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Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial

Autor: Luís Roberto Barroso
Publicado no site em: 22 de setembro de 2016

Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial1Luís Roberto Barroso*

Sumário
Introdução
Apresentação do tema

I. O fornecimento gratuito de medicamentos e a judicialização excessiva

Parte I
Algumas premissas doutrinárias

I. A doutrina da efetividade
II. A teoria dos princípios
III. Constitucionalismo, democracia e papel do Judiciário
IV. Conclusão acerca das premissas doutrinárias

Parte II
O direito à saúde no Brasil. Constituição, Legislação infraconstitucional e a política de distribuição de medicamentos

I. Breve notícia histórica
II. O sistema normativo a partir da Constituição de 1988
III. A questão específica da distribuição de medicamentos

Parte III
Interferência do Poder Judiciário em relação à saúde e ao fornecimento gratuito de medicamentos. Limites legítimos e críticas

I. O espaço inequívoco de atuação judicial
II. Críticas à judicialização excessiva

Parte IV
Alguns parâmetros para racionalizar e uniformizar a atuação judicial no fornecimento de medicamentos


I. Em relação às ações individuais
II. Em relação às ações coletivas
III. Em relação à legitimação passiva

CONCLUSÃO

Introdução

Apresentação do tema

I. O fornecimento gratuito de medicamentos e a judicialização excessiva

1. Nos últimos anos, no Brasil, a Constituição (clique aqui) conquistou, verdadeiramente, força normativa e efetividade. A jurisprudência acerca do direito à saúde e ao fornecimento de medicamentos é um exemplo emblemático do que se vem de afirmar. As normas constitucionais deixaram de ser percebidas como integrantes de um documento estritamente político, mera convocação à atuação do Legislativo e do Executivo, e passaram a desfrutar de aplicabilidade direta e imediata por juízes e tribunais. Nesse ambiente, os direitos constitucionais em geral, e os direitos sociais em particular, converteram-se em direitos subjetivos em sentido pleno, comportando tutela judicial específica. A intervenção do Poder Judiciário, mediante determinações à Administração Pública para que forneça gratuitamente medicamentos em uma variedade de hipóteses, procura realizar a promessa constitucional de prestação universalizada do serviço de saúde.

2. O sistema, no entanto, começa a apresentar sintomas graves de que pode morrer da cura, vítima do excesso de ambição, da falta de critériose de voluntarismos diversos. Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade –, bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas. Por outro lado, não há um critério firme para a aferição de qual entidade estatal – União, Estados e Municípios – deve ser responsabilizada pela entrega de cada tipo de medicamento. Diante disso, os processos terminam por acarretar superposição de esforços e de defesas, envolvendo diferentes entidades federativas e mobilizando grande quantidade de agentes públicos, aí incluídos procuradores e servidores administrativos. Desnecessário enfatizar que tudo isso representa gastos, imprevisibilidade e desfuncionalidade da prestação jurisdicional.

3. Tais excessos e inconsistências não são apenas problemáticos em si. Eles põem em risco a própria continuidade das políticas de saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos. No limite, o casuísmo da jurisprudência brasileira pode impedir que políticas coletivas, dirigidas à promoção da saúde pública, sejam devidamente implementadas. Trata-se de hipótese típica em que o excesso de judicialização das decisões políticas pode levar à não realização prática da Constituição Federal. Em muitos casos, o que se revela é a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em detrimento da generalidade da cidadania, que continua dependente das políticas universalistas implementadas pelo Poder Executivo.

4. O estudo que se segue procura desenvolver uma reflexão teórica e prática acerca de um tema repleto de complexidades e sutilezas. Seu maior propósito é contribuir para a racionalização do problema, com a elaboração de critérios e parâmetros que justifiquem e legitimem a atuação judicial no campo particular das políticas de distribuição de medicamentos. O Judiciário não pode ser menos do que deve ser, deixando de tutelar direitos fundamentais que podem ser promovidos com a sua atuação. De outra parte, não deve querer ser mais do que pode ser, presumindo demais de si mesmo e, a pretexto de promover os direitos fundamentais de uns, causar grave lesão a direitos da mesma natureza de outros tantos. Na frase inspirada de Gilberto Amado, "querer ser mais do que se é, é ser menos".

5. Aqui se chega ao ponto crucial do debate. Alguém poderia supor, a um primeiro lance de vista, que se está diante de uma colisão de valores ou de interesses que contrapõe, de um lado, o direito à vida e à saúde e, de outro, a separação de Poderes, os princípios orçamentários e a reserva do possível. A realidade, contudo, é mais dramática. O que está em jogo, na complexa ponderação aqui analisada, é o direito à vida e à saúde de uns versus o direito à vida e à saúde de outros. Não há solução juridicamente fácil nem moralmente simples nessa questão.

Parte I

Algumas premissas doutrinárias

I. A doutrina da efetividade

6. O reconhecimento de força normativa às normas constitucionais foi uma importante conquista do constitucionalismo contemporâneo. No Brasil, ela se desenvolveu no âmbito de um movimento jurídico-acadêmico conhecido como doutrina brasileira da efetividade2. Tal movimento procurou não apenas elaborar as categorias dogmáticas da normatividade constitucional, como também superar algumas crônicas disfunções da formação nacional, que se materializavam na insinceridade normativa, no uso da Constituição como uma mistificação ideológica e na falta de determinação política em dar-lhe cumprimento. A essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa.

7. Nessa linha, as normas constitucionais, como as normas jurídicas em geral, são dotadas do atributo da imperatividade. Não é próprio de uma norma jurídica sugerir, recomendar, alvitrar. Normas constitucionais, portanto, contêm comandos. Descumpre-se a imperatividade de uma norma tanto por ação quanto por omissão. Ocorrida a violação, o sistema constitucional e infraconstitucional devem prover meios para a tutela do direito ou bem jurídico afetados e restauração da ordem jurídica. Estes meios são a ação e a jurisdição: ocorrendo uma lesão, o titular do direito ou alguém com legitimação ativa para protegê-lo pode ir a juízo postular reparação. Existem mecanismos de tutela individual e de tutela coletiva de direitos.

8. Na prática, em todas as hipóteses em que a Constituição tenha criado direitos subjetivos – políticos, individuais, sociais3 ou difusos – são eles, como regra, direta e imediatamente exigíveis, do Poder Público ou do particular, por via das ações constitucionais e infraconstitucionais contempladas no ordenamento jurídico. O Poder Judiciário, como conseqüência, passa a ter papel ativo e decisivo na concretização da Constituição. A doutrina da efetividade serviu-se, como se deduz explicitamente da exposição até aqui desenvolvida, de uma metodologia positivista: direito constitucional é norma; e de um critério formal para estabelecer a exigibilidade de determinados direitos: se está na Constituição é para ser cumprido4. Nos dias que correm, tornou-se necessária a sua convivência com novas formulações doutrinárias, de base pós-positivista, que levam em conta fenômenos apreendidos mais recentemente, como a colisão entre normas – especialmente as que abrigam princípios e direitos fundamentais –, a necessidade da ponderação para resolver tais situações, bem como conceitos como mínimo existencial e fundamentalidade material dos direitos.

II. A teoria dos princípios

9. A teoria dos princípios, à qual se acha associada uma teoria dos direitos fundamentais, desenvolveu-se a partir dos estudos seminais de Ronald Dworkin, difundidos no Brasil ao final da década de 80 e ao longo dos anos 90 do século passado5. Na seqüência histórica, Robert Alexy ordenou a teoria dos princípios em categorias mais próximas da perspectiva romano-germânica do Direito6. As duas obras precursoras desses autores – Levando os direitos a sério e Teoria dos direitos fundamentais – deflagraram uma verdadeira explosão de estudos sobre o tema, no Brasil e alhures7. São elementos essenciais do pensamento jurídico contemporâneo a atribuição de normatividade aos princípios e o reconhecimento da distinção qualitativa entre regras e princípios A doutrina costuma compilar uma enorme variedade de critérios para estabelecer a diferença entre ambos8.

10. É quanto ao modo de aplicação que reside a principal distinção entre regra e princípio. Regras se aplicam na modalidade tudo ou nada: ocorrendo o fato descrito em seu relato ela deverá incidir, produzindo o efeito previsto9. Se não for aplicada à sua hipótese de incidência, a norma estará sendo violada. Não há maior margem para elaboração teórica ou valoração por parte do intérprete, ao qual caberá aplicar a regra mediante subsunção: enquadra-se o fato na norma e deduz-se uma conclusão objetiva. Por isso se diz que as regras são mandados ou comandos definitivos10: uma regra somente deixará de ser aplicada se outra regra a excepcionar ou se for inválida. Como conseqüência, os direitos nela fundados também serão definitivos11.

11. Já os princípios abrigam um direito fundamental, um valor, um fim. Ocorre que, em uma ordem jurídica pluralista, a Constituição abriga princípios que apontam em direções diversas, gerando tensões e eventuais colisões entre eles. Estes entrechoques podem ser de três tipos: a) colisão entre princípios constitucionais, como, e.g., a livre iniciativa versus a proteção do consumidor, na hipótese de se pretender tabelar o preço de determinado medicamento; b) colisão entre direitos fundamentais, como, e.g., o direito à vida e à saúde de uma pessoa versus o direito à vida e à saúde de outra pessoa, na hipótese de ambos necessitarem com urgência de transplante de determinado órgão, quando só exista um disponível; c) colisão entre direitos fundamentais e outros princípios constitucionais, como, e.g., o direito à saúde versus a separação de Poderes, no caso de determinadas opções legais ou administrativas acerca de tratamentos a serem oferecidos.

12. Como todas essas normas em rota de colisão têm a mesma hierarquia, não podem elas ser aplicadas na modalidade tudo ou nada, mas sim de acordo com a dimensão de peso que assumem na situação específica. Cabe à autoridade competente – que poderá ser o legislador ou o intérprete judicial – proceder à ponderação dos princípios e fatos relevantes, e não a subsunção do fato a uma regra determinada. Por isso se diz que princípios são mandados de otimização: devem ser realizados na maior intensidade possível, à vista dos demais elementos jurídicos e fáticos presentes na hipótese12. Daí decorre que os direitos neles fundados são direitos prima facie – isto é, poderão ser exercidos em princípio e na medida do possível13.

13. Uma última observação: em muitas situações, o legislador realiza ponderações em abstrato, definindo parâmetros que devem ser seguidos nos casos de colisão. Quando isso ocorrer, não deve o intérprete judicial sobrepor a sua própria valoração à que foi feita pelo órgão de representação popular, a menos que esteja convencido – e seja capaz de racionalmente demonstrar – que a norma em que se consubstanciou a ponderação não é compatível com a Constituição14.

III. Constitucionalismo, Democracia e papel do Poder Judiciário

14. A idéia de Estado democrático de direito, consagrada no art. 1º da Constituição brasileira15, é a síntese histórica de dois conceitos que são próximos, mas não se confundem: os de constitucionalismo e de democracia. Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de direito, rule of law, Rechtsstaat). Democracia, por sua vez, em aproximação sumária, traduz-se em soberania popular e governo da maioria. Entre constitucionalismo e democracia podem surgir, eventualmente, pontos de tensão: a vontade da maioria pode ter de estancar diante de determinados conteúdos materiais, orgânicos ou processuais da Constituição. A compreensão desse ponto é decisiva para o equacionamento adequado da questão aqui tratada.

15. O Estado constitucional de direito gravita em torno da dignidade da pessoa humana e da centralidade dos direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana é o centro de irradiação dos direitos fundamentais, sendo freqüentemente identificada como o núcleo essencial de tais direitos16. Os direitos fundamentais incluem: a) a liberdade, isto é, a autonomia da vontade, o direito de cada um eleger seus projetos existenciais; b) a igualdade, que é o direito de ser tratado com a mesma dignidade que todas as pessoas, sem discriminações arbitrárias e exclusões evitáveis; c) o mínimo existencial, que corresponde às condições elementares de educação, saúde e renda que permitam, em uma determinada sociedade, o acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida no processo político e no debate público. Os três Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – têm o dever de realizar os direitos fundamentais, na maior extensão possível, tendo como limite mínimo o núcleo essencial desses direitos.

16. O princípio democrático, por sua vez, se expressa na idéia de soberania popular: todo poder emana do povo, na dicção expressa do parágrafo único do art. 1º da Constituição brasileira17. Como decorrência, o poder político deve caber às maiorias que se articulam a cada época. O sistema representativo permite que, periodicamente, o povo se manifeste elegendo seus representantes. O Chefe do Executivo e os membros do Legislativo são escolhidos pelo voto popular e são o componente majoritário do sistema. Os membros do Poder Judiciário são recrutados, como regra geral, por critérios técnicos e não eletivos. A idéia de governo da maioria se realiza, sobretudo, na atuação do Executivo e do Legislativo, aos quais compete a elaboração de leis, a alocação de recursos e a formulação e execução de políticas públicas, inclusive as de educação, saúde, segurança etc.

17. Como visto, constitucionalismo traduz-se em respeito aos direitos fundamentais. E democracia, em soberania popular e governo da maioria. Mas pode acontecer de a maioria política vulnerar direitos fundamentais. Quando isto ocorre, cabe ao Judiciário agir. É nesse ambiente, é nessa dualidade presente no Estado constitucional democrático que se coloca a questão essencial: podem juízes e tribunais interferir com as deliberações dos órgãos que representam as maiorias políticas – isto é, o Legislativo e o Executivo –, impondo ou invalidando ações administrativas e políticas públicas? A resposta será afirmativa sempre que o Judiciário estiver atuando, inequivocamente, para preservar um direito fundamental previsto na Constituição ou para dar cumprimento a alguma lei existente. Vale dizer: para que seja legítima, a atuação judicial não pode expressar um ato de vontade própria do órgão julgador, precisando sempre reconduzir-se a uma prévia deliberação majoritária, seja do constituinte, seja do legislador18.

IV. Conclusão das premissas doutrinárias

18. Sempre que a Constituição define um direito fundamental ele se torna exigível, inclusive mediante ação judicial. Pode ocorrer de um direito fundamental precisar ser ponderado com outros direitos fundamentais ou princípios constitucionais, situação em que deverá ser aplicado na maior extensão possível, levando-se em conta os limites fáticos e jurídicos, preservado o seu núcleo essencial. O Judiciário deverá intervir sempre que um direito fundamental – ou infraconstitucional – estiver sendo descumprido, especialmente se vulnerado o mínimo existencial de qualquer pessoa. Se o legislador tiver feito ponderações e escolhas válidas, à luz das colisões de direitos e de princípios, o Judiciário deverá ser deferente para com elas, em respeito ao princípio democrático.

Parte II

O direito à saúde no Brasil. Constituição, Legislação Infraconstitucional e a Política de distribuição de medicamentos

I. Breve notícia histórica

19. A trajetória da saúde pública no Brasil inicia-se ainda no século XIX19, com a vinda da Corte portuguesa. Nesse período, eram realizadas apenas algumas ações de combate à lepra e à peste, e algum controle sanitário, especialmente sobre os portos e ruas. É somente entre 1870 e 1930 que o Estado passa a praticar algumas ações mais efetivas no campo da saúde, com a adoção do modelo "campanhista", caracterizado pelo uso corrente da autoridade e da força policial. Apesar dos abusos cometidos20, o modelo "campanhista" obteve importantes sucessos no controle de doenças epidêmicas, conseguindo, inclusive, erradicar a febre amarela da cidade do Rio de Janeiro21.

20. Durante o período de predominância desse modelo, não havia, contudo, ações públicas curativas, que ficavam reservadas aos serviços privados e à caridade. Somente a partir da década de 30, há a estruturação básica do sistema público de saúde, que passa a realizar também ações curativas. É criado o Ministério da Educação e Saúde Pública22. Criam-se os Institutos de Previdência, os conhecidos IAPs, que ofereciam serviços de saúde de caráter curativo. Alguns destes IAPs possuíam, inclusive, hospitais próprios. Tais serviços, contudo, estavam limitados à categoria profissional ligada ao respectivo Instituto23. A saúde pública não era universalizada em sua dimensão curativa, restringindo-se a beneficiar os trabalhadores que contribuíam para os institutos de previdência.

21. Ao longo do regime militar, os antigos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) foram unificados, com a criação do INPS – Instituto Nacional de Previdência Social. Vinculados ao INPS, foram criados o Serviço de Assistência Médica e Domiciliar de Urgência e a Superintendência dos Serviços de Reabilitação da Previdência Social. Todo trabalhador urbano com carteira assinada era contribuinte e beneficiário do novo sistema, tendo direito a atendimento na rede pública de saúde24. No entanto, grande contingente da população brasileira, que não integrava o mercado de trabalho formal, continuava excluído do direito à saúde, ainda dependendo, como ocorria no século XIX, da caridade pública.

II. O sistema normativo a partir da Constituição de 1988

22. Com a redemocratização, intensificou-se o debate nacional sobre a universalização dos serviços públicos de saúde. O momento culminante do "movimento sanitarista" foi a Assembléia Constituinte, em que se deu a criação do Sistema Único de Saúde. A Constituição Federal estabelece, no art. 196, que a saúde é "direito de todos e dever do Estado", além de instituir o "acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". A partir da Constituição Federal de 1988, a prestação do serviço público de saúde não mais estaria restrita aos trabalhadores inseridos no mercado formal. Todos os brasileiros, independentemente de vínculo empregatício, passaram a ser titulares do direito à saúde25.

II.1. A repartição de competências e a Lei do SUS

23. Do ponto de vista federativo, a Constituição atribuiu competência para legislar sobre proteção e defesa da saúde concorrentemente à União, aos Estados e aos Municípios (CF/88, art. n°. 24, XII, e 30, II). À União cabe o estabelecimento de normas gerais (art. n°. 24, § 1º); aos Estados, suplementar a legislação federal (art. n°. 24, § 2º); e aos Municípios, legislar sobre os assuntos de interesse local, podendo igualmente suplementar a legislação federal e a estadual, no que couber (art. n°. 30, I e II)26. No que tange ao aspecto administrativo (i.e., à possibilidade de formular e executar políticas públicas de saúde), a Constituição atribuiu competência comum à União, aos Estados e aos Municípios (art. n°. 23, II). Os três entes que compõem a federação brasileira podem formular e executar políticas de saúde27.

24. Como todas as esferas de governo são competentes, impõe-se que haja cooperação entre elas, tendo em vista o "equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional" (CF/88, art. n°. 23, parágrafo único). A atribuição de competência comum não significa, porém, que o propósito da Constituição seja a superposição entre a atuação dos entes federados, como se todos detivessem competência irrestrita em relação a todas as questões. Isso, inevitavelmente, acarretaria a ineficiência na prestação dos serviços de saúde, com a mobilização de recursos federais, estaduais e municipais para realizar as mesmas tarefas.

25. Logo após a entrada em vigor da Constituição Federal, em setembro de 1990, foi aprovada a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº. 8.080/90 - clique aqui -). A lei estabelece a estrutura e o modelo operacional do SUS, propondo a sua forma de organização e de funcionamento. O SUS é concebido como o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta. A iniciativa privada poderá participar do SUS em caráter complementar. Entre as principais atribuições do SUS, está a "formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção" (art. 6º, VI).

26. A Lei nº. 8.080/90, além de estruturar o SUS e de fixar suas atribuições, estabelece os princípios pelos quais sua atuação deve se orientar, dentre os quais vale destacar o da universalidade – por força do qual se garante a todas as pessoas o acesso às ações e serviços de saúde disponíveis – e o da subsidiariedade e da municipalização28, que procura atribuir prioritariamente a responsabilidade aos Municípios na execução das políticas de saúde em geral, e de distribuição de medicamentos em particular (art. 7°, I e IX).

27. A Lei nº. 8.080/90 procurou ainda definir o que cabe a cada um dos entes federativos na matéria. À direção nacional do SUS, atribuiu a competência de "prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional" (art. n°. 16, XIII), devendo "promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal" (art. n°. 16, XV). À direção estadual do SUS, a Lei nº. 8.080/90, em seu art. n°. 17, atribuiu as competências de promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde, de lhes prestar apoio técnico e financeiro, e de executar supletivamente ações e serviços de saúde. Por fim, à direção municipal do SUS, incumbiu de planejar, organizar, controlar, gerir e executar os serviços públicos de saúde (art. n°. 18, I e III).

28. Como se observa, Estados e União Federal somente devem executar diretamente políticas sanitárias de modo supletivo, suprindo eventuais ausências dos Municípios. Trata-se de decorrência do princípio da descentralização administrativa. Como antes ressaltado, a distribuição de competências promovida pela Constituição e pela Lei nº. 8.080/90 orienta-se pelas noções de subsidiariedade e de municipalização29. A mesma lei disciplina ainda a participação dos três entes no financiamento do sistema30. Os temas do financiamento e da articulação entre os entes para a administração econômica do sistema, porém, não serão objeto de exame neste estudo. Veja-se, portanto, que o fato de um ente da Federação ser o responsável perante a população pelo fornecimento de determinado bem não significa que lhe caiba custeá-lo sozinho ou isoladamente. Esta, porém, será uma discussão diversa, a ser travada entre os entes da Federação, e não entre eles e os cidadãos.

II. 2. A questão específica da distribuição de medicamentos

29. No que toca particularmente à distribuição de medicamentos, a competência de União, Estados e Municípios não está explicitada nem na Constituição nem na Lei. A definição de critérios para a repartição de competências é apenas esboçada em inúmeros atos administrativos federais, estaduais e municipais, sendo o principal deles a Portaria nº. 3.916/98, do Ministério da Saúde, que estabelece a Política Nacional de Medicamentos31. De forma simplificada, os diferentes níveis federativos, em colaboração, elaboram listas de medicamentos que serão adquiridos e fornecidos à população.

30. Com efeito, ao gestor federal caberá a formulação da Política Nacional de Medicamentos, o que envolve, além do auxílio aos gestores estaduais e municipais, a elaboração da Relação Nacional de Medicamento (RENAME). Ao Município, por seu turno, cabe definir a relação municipal de medicamentos essenciais, com base na RENAME32, e executar a assistência farmacêutica. O propósito prioritário da atuação municipal é assegurar o suprimento de medicamentos destinados à atenção básica à saúde, além de outros medicamentos essenciais que estejam definidos no Plano Municipal de Saúde. O Município do Rio de Janeiro, por exemplo, estabeleceu, através da Resolução SMS nº 1.048, de março de 2004, a Relação Municipal de Medicamentos Essenciais (REMUME)33, instrumento técnico-normativo que reúne todo o elenco de medicamentos padronizados usados pela Secretaria Municipal de Saúde34.

31. A União em parceria com os Estados e o Distrito Federal ocupa-se sobretudo da aquisição e distribuição dos medicamentos de caráter excepcional35, conforme disposto nas Portarias nº. 2.577/GM, de 27.10.2006, e nº. 1.321, de 5.6.200736. Assim, ao gestor estadual caberá definir o elenco de medicamentos que serão adquiridos diretamente pelo Estado, particularmente os de distribuição em caráter excepcional. No caso específico do Estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de Saúde criou Comitê Técnico Operacional, com as funções de adquirir, armazenar e distribuir os medicamentos de competência estadual (Resolução SES nº. 2.471, de 20.7.2004)37. Além disso, criou também o Colegiado Gestor da Política Estadual de Medicamentos e Assistência Farmacêutica (Resolução SES nº. 2.600, de 2.12.2004)38, que tem a função de auxiliar a Secretaria de Estado na gestão da Assistência Farmacêutica. Acrescenta-se ainda que o Governo Estadual possui um programa de assistência farmacêutica denominado Farmácia Popular, que fornece remédios à população a preços módicos39.

32. Como se pode perceber da narrativa empreendida, não seria correto afirmar que os Poderes Legislativo e Executivo encontram-se inertes ou omissos – ao menos do ponto de vista normativo – no que toca à entrega de medicamentos para a população. Ao contrário, as listas definidas por cada ente federativo veiculam as opções do Poder Público na matéria, tomadas – presume-se – considerando as possibilidades financeiras existentes. Após as reflexões teóricas e a descrição do quadro normativo, levadas a efeito nos capítulos anteriores, impõe-se agora a análise crítica do papel desempenhado pela jurisprudência para, na seqüência, procurar desenvolver alguns parâmetros objetivos capazes de dar racionalidade e disciplina adequada à questão.

Parte III

Interferência do Poder Judiciário em relação à saúde e ao fornecimento gratuito de medicamentos. Limites legítimos e críticas

I. O espaço inequívoco de atuação judicial

33. O papel do Poder Judiciário, em um Estado constitucional democrático, é o de interpretar a Constituição e as leis, resguardando direitos e assegurando o respeito ao ordenamento jurídico. Em muitas situações, caberá a juízes e tribunais o papel de construção do sentido das normas jurídicas, notadamente quando esteja em questão a aplicação de conceitos jurídicos indeterminados e de princípios. Em inúmeros outros casos, será necessário efetuar a ponderação entre direitos fundamentais e princípios constitucionais que entram em rota de colisão, hipóteses em que os órgãos judiciais precisam proceder a concessões recíprocas entre normas ou fazer escolhas fundamentadas40.

34. Pois bem. O controle jurisdicional em matéria de entrega de medicamentos deve ter por fundamento – como todo controle jurisdicional – uma norma jurídica, fruto da deliberação democrática. Assim, se uma política pública, ou qualquer decisão nessa matéria, é determinada de forma específica pela Constituição ou por leis válidas, a ação administrativa correspondente poderá ser objeto de controle jurisdicional como parte do natural ofício do magistrado de aplicar a lei. Também será legítima a utilização de fundamentos morais ou técnicos, quando seja possível formular um juízo de certo/errado em face das decisões dos poderes públicos. Não é dessas hipóteses que se está cuidando aqui.

35. O tema versado no presente estudo envolve princípios e direitos fundamentais, como dignidade da pessoa humana, vida e saúde. Disso resultam duas conseqüências relevantes. A primeira: como cláusulas gerais que são, comportam uma multiplicidade de sentidos possíveis e podem ser realizados por meio de diferentes atos de concretização. Em segundo lugar, podem eles entrar em rota de colisão entre si. A extração de deveres jurídicos a partir de normas dessa natureza e estrutura deve ter como cenário principal as hipóteses de omissão dos Poderes Públicos ou de ação que contravenha a Constituição. Ou, ainda, de não atendimento do mínimo existencial.

36. Ressalvadas as hipóteses acima, a atividade judicial deve guardar parcimônia e, sobretudo, deve procurar respeitar o conjunto de opções legislativas e administrativas formuladas acerca da matéria pelos órgãos institucionais competentes. Em suma: onde não haja lei ou ação administrativa implementando a Constituição, deve o Judiciário agir. Havendo lei e atos administrativos, e não sendo devidamente cumpridos, devem os juízes e tribunais igualmente intervir. Porém, havendo lei e atos administrativos implementando a Constituição e sendo regularmente aplicados, eventual interferência judicial deve ter a marca da autocontenção.

II. Críticas à judicialização excessiva

37. A normatividade e a efetividade das disposições constitucionais estabeleceram novos patamares para o constitucionalismo no Brasil e propiciaram uma virada jurisprudencial41 que é celebrada como uma importante conquista. Em muitas situações envolvendo direitos sociais, direito à saúde e mesmo fornecimento de medicamentos, o Judiciário poderá e deverá intervir. Tal constatação, todavia, não torna tal intervenção imune a objeções diversas, sobretudo quando excessivamente invasiva da deliberação dos outros Poderes. De fato, existe um conjunto variado de críticas ao ativismo judicial nessa matéria, algumas delas dotadas de seriedade e consistência. Faz-se no presente tópico um breve levantamento de algumas dessas críticas, sem a preocupação de endossá-las ou infirmá-las. O propósito aqui é oferecer uma visão plural do tema, antes da apresentação dos parâmetros propostos no capítulo seguinte.

38. A primeira e mais freqüente crítica oposta à jurisprudência brasileira se apóia na circunstância de a norma constitucional aplicável estar positivada na forma de norma programática42. O artigo 196 da Constituição Federal deixa claro que a garantia do direito à saúde se dará por meio de políticas sociais e econômicas, não através de decisões judiciais43. A possibilidade de o Poder Judiciário concretizar, independentemente de mediação legislativa, o direito à saúde encontra forte obstáculo no modo de positivação do artigo n°. 196, que claramente defere a tarefa aos órgãos executores de políticas públicas.

39. Uma outra vertente crítica enfatiza a impropriedade de se conceber o problema como de mera interpretação de preceitos da Constituição. Atribuir-se ou não ao Judiciário a prerrogativa de aplicar de maneira direta e imediata o preceito que positiva o direito à saúde seria, antes, um problema de desenho institucional44. Há diversas possibilidades de desenho institucional nesse domínio. Pode-se entender que a melhor forma de otimizar a eficiência dos gastos públicos com saúde é conferir a competência para tomar decisões nesse campo ao Poder Executivo, que possui visão global tanto dos recursos disponíveis quanto das necessidades a serem supridas. Esta teria sido a opção do constituinte originário, ao determinar que o direito à saúde fosse garantido através de políticas sociais e econômicas. As decisões judiciais que determinam a entrega gratuita de medicamentos pelo Poder Público levariam, portanto, à alteração do arranjo institucional concebido pela Constituição de 1988.

40. Uma terceira impugnação à atuação judicial na matéria, repetidamente formulada, diz respeito à intricada questão da legitimidade democrática. Não são poucos os que sustentam a impropriedade de se retirar dos poderes legitimados pelo voto popular a prerrogativa de decidir de que modo os recursos públicos devem ser gastos. Tais recursos são obtidos através da cobrança de impostos. É o próprio povo – que paga os impostos – quem deve decidir de que modo os recursos públicos devem ser gastos45. E o povo pode, por exemplo, preferir priorizar medidas preventivas de proteção da saúde, ou concentrar a maior parte dos recursos públicos na educação das novas gerações. Essas decisões são razoáveis, e caberia ao povo tomá-las, diretamente ou por meio de seus representantes eleitos46.

41. Talvez a crítica mais freqüente seja a financeira, formulada sob a denominação de "reserva do possível"47. Os recursos públicos seriam insuficientes para atender às necessidades sociais, impondo ao Estado sempre a tomada de decisões difíceis. Investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros. De fato, o orçamento apresenta-se, em regra, aquém da demanda social por efetivação de direitos, sejam individuais, sejam sociais48. Em diversos julgados mais antigos, essa linha de argumentação predominava. Em 1994, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao negar a concessão de medida cautelar a paciente portador de insuficiência renal, alegou o alto custo do medicamento, a impossibilidade de privilegiar um doente em detrimento de outros, bem como a impropriedade de o Judiciário "imiscuir-se na política de administração pública"49.

42. Mais recentemente, vem se tornando recorrente a objeção de que as decisões judiciais em matéria de medicamentos provocam a desorganização da Administração Pública. São comuns, por exemplo, programas de atendimentos integral, no âmbito dos quais, além de medicamentos, os pacientes recebem atendimento médico, social e psicológico. Quando há alguma decisão judicial determinando a entrega imediata de medicamentos, freqüentemente o Governo retira o fármaco do programa, desatendendo a um paciente que o recebia regularmente, para entregá-lo ao litigante individual que obteve a decisão favorável50. Tais decisões privariam a Administração da capacidade de se planejar, comprometendo a eficiência administrativa no atendimento ao cidadão. Cada uma das decisões pode atender às necessidades imediatas do jurisdicionado, mas, globalmente, impediria a otimização das possibilidades estatais no que toca à promoção da saúde pública.

43. No contexto da análise econômica do direito, costuma-se objetar que o benefício auferido pela população com a distribuição de medicamentos é significativamente menor que aquele que seria obtido caso os mesmos recursos fossem investidos em outras políticas de saúde pública51, como é o caso, por exemplo, das políticas de saneamento básico e de construção de redes de água potável52. Em 2007, por exemplo, no Estado do Rio de Janeiro, já foram gastos com os programas de Assistência Farmacêutica R$ 240.621.568,00 – cifra bastante superior aos R$ 102.960.276,00 que foram investidos em saneamento básico53. Tal opção não se justificaria, pois se sabe que esta política é significativamente mais efetiva que aquela no que toca à promoção da saúde54. Na verdade, a jurisprudência brasileira sobre concessão de medicamentos se apoiaria numa abordagem individualista dos problemas sociais, quando uma gestão eficiente dos escassos recursos públicos deve ser concebida como política social, sempre orientada pela avaliação de custos e benefícios55.

44. As políticas públicas de saúde devem seguir a diretriz de reduzir as desigualdades econômicas e sociais. Contudo, quando o Judiciário assume o papel de protagonista na implementação dessas políticas, privilegia aqueles que possuem acesso qualificado à Justiça, seja por conhecerem seus direitos, seja por poderem arcar com os custos do processo judicial. Por isso, a possibilidade de o Judiciário determinar a entrega gratuita de medicamentos mais serviria à classe média que aos pobres. Inclusive, a exclusão destes se aprofundaria pela circunstância de o Governo transferir os recursos que lhes dispensaria, em programas institucionalizados, para o cumprimento de decisões judiciais, proferidas, em sua grande maioria, em benefício da classe média56.

45. Por fim, há ainda a crítica técnica, a qual se apóia na percepção de que o Judiciário não domina o conhecimento específico necessário para instituir políticas de saúde. O Poder Judiciário não tem como avaliar se determinado medicamento é efetivamente necessário para se promover a saúde e a vida. Mesmo que instruído por laudos técnicos, seu ponto de vista nunca seria capaz de rivalizar com o da Administração Pública57. O juiz é um ator social que observa apenas os casos concretos, a micro-justiça, ao invés da macro-justiça, cujo gerenciamento é mais afeto à Administração Pública58.

Parte IV

Alguns parâmetros para racionalizar e uniformizar a atuação judicial no fornecimento de medicamentos

I. Em relação às ações individuais

Parâmetro: no âmbito de ações individuais, a atuação jurisdicional deve ater-se a efetivar a dispensação dos medicamentos constantes das listas elaboradas pelos entes federativos.

46. O primeiro parâmetro que parece consistente elaborar é o que circunscreve a atuação do Judiciário – no âmbito de ações individuais – a efetivar a realização das opções já formuladas pelos entes federativos e veiculadas nas listas de medicamentos referidas acima59. Veja-se que o artigo n°.196 da Constituição Federal associa a garantia do direito à saúde a políticas sociais e econômicas, até para que seja possível assegurar a universalidade das prestações e preservar a isonomia no atendimento aos cidadãos, independentemente de seu acesso maior ou menor ao Poder Judiciário. Presume-se que Legislativo e Executivo, ao elaborarem as listas referidas, avaliaram, em primeiro lugar, as necessidades prioritárias a serem supridas e os recursos disponíveis, a partir da visão global que detêm de tais fenômenos. E, além disso, avaliaram também os aspectos técnico-médicos envolvidos na eficácia e emprego dos medicamentos.

47. Esse primeiro parâmetro decorre também de um argumento democrático. Os recursos necessários ao custeio dos medicamentos (e de tudo o mais) são obtidos através da cobrança de tributos. E é o próprio povo – que paga os tributos – quem deve decidir preferencialmente, por meio de seus representantes eleitos, de que modo os recursos públicos devem ser gastos e que prioridades serão atendidas em cada momento. A verdade é que os recursos públicos são insuficientes para atender a todas as necessidades sociais, impondo ao Estado a necessidade permanente de tomar decisões difíceis: investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros. A decisão judicial que determina a dispensação de medicamento que não consta das listas em questão enfrenta todo esse conjunto de argumentos jurídicos e práticos.

48. Foi nessa linha que entendeu a Ministra Ellen Gracie na SS 3073/RN, considerando inadequado fornecer medicamento que não constava da lista do Programa de Dispensação em Caráter Excepcional do Ministério da Saúde. A Ministra enfatizou que o Governo Estadual (Rio Grande do Norte) não estava se negando à prestação dos serviços de saúde e que decisões casuísticas, ao desconsiderarem as políticas públicas definidas pelo Poder Executivo, tendem a desorganizar a atuação administrativa, comprometendo ainda mais as já combalidas políticas de saúde60.

49. Essa mesma orientação predominou no Superior Tribunal de Justiça, em ação na qual se requeria a distribuição de medicamentos fora da lista. Segundo o Ministro Nilson Naves, havendo uma política nacional de distribuição gratuita, a decisão que obriga a fornecer qualquer espécie de substância fere a independência entre os Poderes e não atende a critérios técnico-científicos61. A princípio, não poderia haver interferência casuística do Judiciário na distribuição de medicamentos que estejam fora da lista. Se os órgãos governamentais específicos já estabeleceram determinadas políticas públicas e delimitaram, com base em estudos técnicos, as substâncias próprias para fornecimento gratuito, não seria razoável a ingerência recorrente do Judiciário.

II. Em relação às ações coletivas

Parâmetro: a alteração das listas pode ser objeto de discussão no âmbito de ações coletivas

50. Um dos fundamentos para o primeiro parâmetro proposto acima, como referido, é a presunção – legítima, considerando a separação de Poderes – de que os Poderes Públicos, ao elaborarem as listas de medicamentos a serem dispensados, fizeram uma avaliação adequada das necessidades prioritárias, dos recursos disponíveis e da eficácia dos medicamentos. Essa presunção, por natural, não é absoluta ou inteiramente infensa a revisão judicial. Embora não caiba ao Judiciário refazer as escolhas dos demais Poderes, cabe-lhe por certo coibir abusos.

51. Assim, a impossibilidade de decisões judiciais que defiram a litigantes individuais a concessão de medicamentos não constantes das listas não impede que as próprias listas sejam discutidas judicialmente. O Judiciário poderá vir a rever a lista elaborada por determinado ente federativo para, verificando grave desvio na avaliação dos Poderes Públicos, determinar a inclusão de determinado medicamento. O que se propõe, entretanto, é que essa revisão seja feita apenas no âmbito de ações coletivas (para defesa de direitos difusos ou coletivos e cuja decisão produz efeitos erga omnes no limite territorial da jurisdição de seu prolator) ou mesmo por meio de ações abstratas de controle de constitucionalidade, nas quais se venha a discutir a validade de alocações orçamentárias62. As razões para esse parâmetro são as seguintes.

52. Em primeiro lugar, a discussão coletiva ou abstrata exigirá naturalmente um exame do contexto geral das políticas públicas discutidas (o que em regra não ocorre, até por sua inviabilidade, no contexto de ações individuais) e tornará mais provável esse exame, já que os legitimados ativos (Ministério Público, associações etc.) terão melhores condições de trazer tais elementos aos autos e discuti-los. Será possível ter uma idéia mais realista de quais as dimensões da necessidade (e.g., qual o custo médio, por mês, do atendimento de todas as pessoas que se qualificam como usuárias daquele medicamento) e qual a quantidade de recursos disponível como um todo.

53. Em segundo lugar, é comum a afirmação de que, preocupado com a solução dos casos concretos – o que se poderia denominar de micro-justiça –, o juiz fatalmente ignora outras necessidades relevantes e a imposição inexorável de gerenciar recursos limitados para o atendimento de demandas ilimitadas: a macro-justiça63. Ora, na esfera coletiva ou abstrata examina-se a alocação de recursos ou a definição de prioridades em caráter geral, de modo que a discussão será prévia ao eventual embate pontual entre micro e macro-justiças. Lembre-se ainda, como já se referiu, que a própria Constituição estabelece percentuais mínimos de recursos que devem ser investidos em determinadas áreas: é o que se passa com educação, saúde (CF/88, arts. n°. 198, § 2º, e 212) e com a vinculação das receitas das contribuições sociais ao custeio da seguridade social. Nesse caso, o controle em abstrato – da alocação orçamentária de tais recursos às finalidades impostas pela Constituição – torna-se substancialmente mais simples.

54. Em terceiro lugar, e como parece evidente, a decisão eventualmente tomada no âmbito de uma ação coletiva ou de controle abstrato de constitucionalidade produzirá efeitos erga omnes, nos termos definidos pela legislação, preservando a igualdade e universalidade no atendimento da população. Ademais, nessa hipótese, a atuação do Judiciário não tende a provocar o desperdício de recursos públicos, nem a desorganizar a atuação administrativa, mas a permitir o planejamento da atuação estatal. Com efeito, uma decisão judicial única de caráter geral permite que o Poder Público estruture seus serviços de forma mais organizada e eficiente. Do ponto de vista da defesa do Estado em ações judiciais, essa solução igualmente barateia e racionaliza o uso dos recursos humanos e físicos da Procuradoria-Geral do Estado.

55. No contexto dessas demandas, em que se venha a discutir a alteração das listas, é possível cogitar ainda de outros parâmetros complementares, capazes de orientar as decisões na matéria. Confiram-se.

a) O Judiciário só pode determinar a inclusão, em lista, de medicamentos de eficácia comprovada, excluindo-se os experimentais e os alternativos.

56. Um dos aspectos elementares a serem considerados pelo Judiciário ao discutir a alteração das listas elaboradas pelo Poder Público envolve, por evidente, a comprovada eficácia das substâncias. Nesse sentido, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça suspendeu liminar em ação civil pública que obrigava o Estado a distribuir Interferon Perguilado ao invés do Interferon Comum, este já fornecido gratuitamente. O Tribunal entendeu que o novo medicamento, além de possuir custo desproporcionalmente mais elevado que o comum, não possuía eficácia comprovada. Entendeu ainda que o Judiciário não poderia se basear em opiniões médicas minoritárias ou em casos isolados de eficácia do tratamento64. No mesmo sentido, não se justifica decisão que determina a entrega de substâncias como o composto vitamínico "cogumelo do sol", que se insiram em terapias alternativas de discutível eficácia65.

b) O Judiciário deverá optar por substâncias disponíveis no Brasil.

57. A inclusão de um novo medicamento ou mesmo tratamento médico nas listas a que se vinculam os Poderes Públicos deve privilegiar, sempre que possível, medicamentos disponíveis no mercado nacional e estabelecimentos situados no Brasil, dando preferência àqueles conveniados ao SUS66. Trata-se de decorrência da necessidade de se harmonizar a garantia do direito à saúde com o princípio constitucional do acesso universal e igualitário. Nesse sentido, embora em demanda individual, o Ministro Cezar Peluso, no RE 411.557/DF, admitiu a possibilidade do exame dos fatos e provas, de modo a verificar se seria possível a substituição do tratamento no exterior por um similar no país, o que apenas não ocorreu por se tratar de recurso extraordinário67.

c) O Judiciário deverá optar pelo medicamento genérico, de menor custo.

58. Pelas mesmas razões referidas acima, os medicamentos devem ser preferencialmente genéricos ou de menor custo. O medicamento genérico, nos termos da legislação em vigor (Lei nº. 6.360⁄76 (clique aqui), com a redação da Lei nº. 9.787⁄99 - clique aqui -), é aquele similar ao produto de referência ou inovador, com ele intercambiável, geralmente produzido após a expiração da proteção patentária, com comprovada eficácia, segurança e qualidade.

d) O Judiciário deverá considerar se o medicamento é indispensável para a manutenção da vida.

59. A discussão sobre a inclusão de novos medicamentos na listagem que o Poder Público deverá oferecer à população deve considerar, como um parâmetro importante, além dos já referidos, a relação mais ou menos direta do remédio com a manutenção da vida. Parece evidente que, em um contexto de recursos escassos, um medicamento vital à sobrevivência de determinados pacientes terá preferência sobre outro que apenas é capaz de proporcionar melhor qualidade de vida, sem, entretanto, ser essencial para a sobrevida.

III. Em relação à legitimação passiva

Parâmetro: o ente federativo que deve figurar no pólo passivo de ação judicial é aquele responsável pela lista da qual consta o medicamento requerido

60. Como mencionado, apesar das listas formuladas por cada ente da federação, o Judiciário vem entendendo possível responsabilizá-los solidariamente, considerando que se trata de competência comum. Esse entendimento em nada contribui para organizar o já complicado sistema de repartição de atribuições entre os entes federativos. Assim, tendo havido a decisão política de determinado ente de incluir um medicamento em sua lista, parece certo que o pólo passivo de uma eventual demanda deve ser ocupado por esse ente. A lógica do parâmetro é bastante simples: através da elaboração de listas, os entes da federação se autovinculam.

61. Nesse contexto, a demanda judicial em que se exige o fornecimento do medicamento não precisa adentrar o terreno árido das decisões políticas sobre quais medicamentos devem ser fornecidos, em função das circunstâncias orçamentárias de cada ente político. Também não haverá necessidade de examinar o tema do financiamento integrado pelos diferentes níveis federativos, discussão a ser travada entre União, Estados e Municípios e não no âmbito de cada demanda entre cidadão e Poder Público. Basta, para a defini&c « Voltar