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Sigilo, inviolabilidade e lavagem de capitais no contexto do novo Código de Ética
Autores: Pierpaolo Cruz Bottini e Heloisa EstellitaPublicado no site em: 05 de setembro de 2016 1. Introdução
A confiança é a base da relação do advogado com seu cliente. Não existe defesa, patrocínio, representação ou consulta possível sem a entrega completa e irrestrita de informações que permitam ao profissional conhecer os fatos, o contexto, as relações e os interesses envolvidos em determinada situação. Tal entrega supõe um laço sólido, uma relação de completa segurança de que tais dados serão preservados, guardados e usados apenas no interesse do representado. Dessa confiança deriva o dever de sigilo profissional e, pois, a inviolabilidade das informações e documentos guardados pelo advogado e das comunicações com seu cliente.
Não por outra razão, o sigilo profissional é objeto de disciplina tanto na lei 8.906/94 (adiante, também "EOAB") como no Código de Ética.
2. Natureza do sigilo profissional do advogado
Os deveres relacionados ao sigilo profissional não são meras prerrogativas de uma determinada "casta" profissional, mas atendem exclusivamente à Administração da Justiça e, dentro dela, ao desempenho das funções dos advogados. Sem eles não existe confiança, e sem esta não há atividade possível de representação ou orientação.1
O advogado é, em verdade, o gerente da Justiça material
No entanto, não poucas vezes o sigilo e a correlata inviolabilidade dos seus elementos de materialização (documentos, comunicação, etc.) têm sido questionados, identificados como um privilégio, um facilitador da impunidade e um obstáculo à prevenção ou à repressão de crimes. Há quem defenda que a melhor estratégia de combater o delito é o isolamento do criminoso, que passa por cercear suas relações com todos aqueles que possam facilitar a prática dos atos reprovados ou evitar sua punição, dentre os quais o advogado. Para isso, seria necessário obrigar o profissional da advocacia a comunicar às autoridades públicas os atos ilícitos de seu cliente dos quais tiver conhecimento, submeter seus documentos e arquivos a possíveis investigações, e autorizar a interceptação de diálogos e conversas nas quais o caso é discuti- do e as estratégias de defesa são traçadas.
A quebra da confiança, da confidência, da segurança do cliente em seu advogado o fragilizaria, dificultaria a defesa e facilitaria a investigação, a acusação e a condenação, livre do "impertinente obstáculo" do exercício da defesa, e, pois, em descumprimento das regras mínimas do devido processo legal.
O advogado é, em verdade, o garante da Justiça material. Se alega insistentemente a falta de justa causa e inépcia de denúncias é porque a Justiça material exige uma acusação bem formulada. Se aponta nulidades processuais é porque a Justiça material impõe um julgamento livre de vícios. Se indica com frequência incompetências ou exceções é porque a Justiça material requer que os fatos sejam analisados por um juiz natural e imparcial. Se argumenta a prescrição é porque a Justiça material pune a morosidade e a eternização do martírio processual. Se recorre com frequência é porque a Justiça material não se contenta com uma única condenação, e demanda um duplo grau para que a punição seja revista por um colegiado. Por fim, se protege as informações repassadas pelo cliente com o sigilo e inviolabilidade é porque a Justiça material demanda uma defesa técnica efetiva, e só pode fazê-la o advogado que estiver em posse de todas as informações relevantes para a defesa de seu representado.
É a isso que se refere a Constituição ao dispor que o advogado exerce função essencial à Administração da Justiça. Sua função não é opor obstáculos, mas legitimar a eventual aplicação ou não da própria sanção penal, que só pode ser imposta após debate contraditório sobre os fatos, o qual não se estabelece sem defesa técnica efetiva. Ao defender o réu, o advogado defende a Constituição, a legalidade, o Estado de Direito, impedindo a relativização de direitos e garantias, por mais grave que seja o caso concreto. Sua tarefa é evitar a criação de exceções, de precedentes, que possam espraiar insegurança em nome das melhores intenções, várias das quais residem em local bem conhecido.
Como apontou o ministro Dias Toffoli, ao tratar dos princípios moralizantes, de salvação nacional, que pautam alguns discursos:
"[...] julgo não ser ocioso avivar a memória coletiva sobre a correlação histórica e os riscos do discurso moralizante, quando ele chega ao extremo de desrespeitar o núcleo essencial de direitos fundamentais, ainda que de indivíduos pelos quais não se exprime uma opinião das mais favoráveis".2
Para cumprir a tarefa que a lei lhe incumbe relativamente a seu representado, o advogado precisa de armas institucionais, ou melhor, de proteções legais que o permitam desafiar o arbítrio, restituir a legalidade, assegurar direitos. E uma dessas proteções é justamente a inviolabilidade de sua relação com o cliente. A garantia de que tudo o que ouvir, anotar, receber ou registrar do cliente não será tocado ou usado contra ele. A segurança de poder tratar abertamente dos fatos com o acusado para aconselhá-lo sobre a melhor forma possível de se defender, ciente de que nenhuma autoridade terá acesso a tais diálogos ou conversações. A tranquilidade da privacidade institucional.
O novo Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados (CEDOAB) sabiamente mantém tais institutos (arts. 35 e ss.), e nem pode- ria ser diferente porque eles estão antes previstos em lei (lei 8.906/94, art. 7º, incisos II e XIX).
3. Sigilo profissional
O sigilo profissional é fixado no art. 7º da lei 8.906/94 e no art. 35 do CEDOAB, segundo os quais o advogado tem o dever de guardar sigilo sobre os fatos de que toma conhecimento no exercício da profissão. Tais fatos são abrangentes, envolvendo não apenas aqueles conhecidos no exercício da representação contenciosa, mas também em qualquer atividade típica de advocacia, tais quais descritas no art. 1º da lei 8.906/94, consultoria, assessoria e direção jurídicas, e os atos e contratos constitutivos de pessoas jurídicas. Também são protegidas pelo sigilo segundo o Código de Ética e Disciplina as informações conhecidas pelo advogado quando exerce as funções de mediador, conciliador e árbitro (art. 36, § 2º) – se bem que nesses casos, a nosso ver, o sigilo tem relação com a função, e não com a qualidade de quem a exerce, de forma que existirá o dever de resguardo mesmo que o profissional não seja advogado.
A violação do sigilo profissional, a par de submeter o advogado à sanção disciplinar, o sujeita a possível sanção penal (art. 154 do Código Penal brasileiro), o que deixa claro que o segredo profissional não é estabelecido em favor do advogado (que receberá a sanção penal em caso de violação), mas do assistido ou representado.
O âmbito de abrangência do objeto do sigilo é amplo e envolve todos os meios e todo o conteúdo de informações necessárias ao exercício das atividades típicas da advocacia.
Não raro advogados ou diretores jurídicos de empresas são arrolados como testemunhas de acusação, ou chamados para prestar depoimento em inquéritos ou investigações diversas. Em se tratando de atividade e direção jurídica, tal prática fere a lei e o estatuto, de forma que a própria Ordem deve intervir para evitar tais constrangimentos, uma vez que o profissional não é obrigado a colaborar com as autoridades, nem mesmo se autorizado pelo representado.
Assim, não pode o advogado quebrar o sigilo, mesmo que instado por autoridades públicas ou investigadores, a não ser que exista justa causa.
Justa causa significa, neste contexto, dever legal, exercício de direito ou necessidade, esta advinda da imperatividade do exercício da autodefesa ou de direitos similares, caso a revelação do segredo seja imprescindível para proteger o advogado ou terceiros de acusações infundadas, por exemplo. O Código de Ética e Disciplina aponta como exemplos de justa causa os casos de "grave ameaça ao direito à vida e à honra ou que envolvam defesa própria" (art. 37). Assim, o advogado acusado de receber valores indevidos através de contratos de fachada, por serviços não prestados, pode apresentar o contrato de honorários, as peças produzidas e provas da atividade desempenhada como prova de sua idoneidade, mesmo sem autorização do cliente.
Fora destas situações excepcionais, todo e qualquer diálogo ou conversação entre advogado e cliente é protegido pelo sigilo.
4. Inviolabilidade
Por outro lado, a inviolabilidade é prevista no art. 7º, inciso II, da lei 8.906/94, e protege o escritório ou local de trabalho, bem como seus instrumentos de trabalho, sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia. Assim, qualquer comunicação entre advogado e cliente é inviolável, seja por correio, telefone, e-mail, Facebook, WhatsApp ou qualquer outro meio similar.
A inviolabilidade é mais abrangente que o sigilo porque não se refere apenas àquele que recebe a informação e tem o dever de guardá-la, mas também a resguarda contra terceiros, como autoridades públicas, que não podem acessar dados ou documentos em posse ou dirigidos ao advogado, nem mesmo por ordem judicial. Assim, cautelares de busca e apreensão ou de quebra de sigilo telefônico ou telemático devem excluir as comunicações com o advogado, ou os documentos entregues a este. Quando tal condição não é conhecida com antecedência, deverão ser excluídas dos autos tais provas tão logo o juiz perceba a natureza inviolável dos elementos juntados.
Não pode o advogado quebrar o sigilo, mesmo que instado por autoridades públicas ou investigadores.
Evidente que tal prerrogativa não subsiste quando o advogado concorre para o crime, como instigador, colaborador ou coautor. Nessas hipóteses, "presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado, a autoridade judiciária competente poderá decretar a quebra da inviolabilidade" (lei 8.906/94, art. 7º, § 6º). Mesmo aqui, será necessário i) que o advogado seja investigado; e ii) que o sigilo relativo a dados de outros clientes – que não aquele envolvido nos fatos – seja preservado.
Mas, mais uma vez, ausente tal situação excepcional, a inviolabilidade é a regra.
5. Inviolabilidade e o dever de comunicar operações suspeitas
São recorrentes as tentativas de estabelecer outras hipóteses de relativização da regra. Merecem especial menção certas leis estrangeiras que buscam impor ao advogado um dever de comunicação às autoridades públicas sempre que identifique um ato suspeito nos atos de seu cliente. Tal propósito surge com alguma frequência nas leis de combate à lavagem de dinheiro, como a brasileira, que, em seu art. 9º, inciso XIV, dispõe que todos aqueles que prestam serviços de assessoria, consultoria, auditoria, aconselhamento ou assistência em operações imobiliárias, societárias e similares têm o dever de comunicar ao Coaf atos suspeitos de lavagem de dinheiro praticados por seus clientes.3
Ora, se o advogado presta assessoria e consultoria nessas searas – e muitos o fazem –, deveria comunicar às autoridades públicas condutas suspeitas de lavagem de capitais de seu cliente. Ao menos essa é a perspectiva de uma interpretação literal e isolada do dispositivo legal. Todavia, colocada no contexto normativo que rege o exercício da profissão à luz da proteção dos direitos e garantias dos representados, surge um conflito (aparente) de princípios ou de regras jurídicas.4
A discussão não é nova. Em vários países a questão foi objeto de intensos debates judiciais,5 e diversas normativas internacionais dispõem sobre o assunto, em especial as Diretivas do Parlamento Europeu.6
A análise da normativa internacional sobre o tema revela a tendência de classificar as atividades do advogado em diversas categorias distintas, exonerando algumas do dever de comunicar. A Diretiva 2005/849/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (2015) indica como atividade sensível à lavagem de dinheiro o trabalho dos "consultores fiscais; notários e outros membros de profissões jurídicas independentes" quando participem de transações financeiras ou empresariais e prestem serviços de consultoria fiscal onde exista um risco mais acentuado de que seus serviços sejam usados de forma abusiva para efeitos de branqueamento de capitais (art. 2º, 3). O mesmo diploma exclui de forma patente alguns profissionais, nos seguintes termos:
"os Estados-Membros isentam das obrigações estabelecidas no artigo 33, n.1 (obrigações referentes às comunicações obrigatórias) os notários, outros membros de profissões jurídicas independentes, os auditores e revisores oficiais de contas, técnicos de contas externos e consultores fiscais, exclusivamente e na estrita medida em que tal isenção diga respeito às informações por eles recebidas de um dos seus clientes ou obtidas sobre um dos seus clientes no decurso da apreciação da situação jurídica do cliente ou da defesa ou representação desse cliente em processos judiciais ou a respeito de processos judiciais, mesmo quando se trate de conselhos prestados quanto à forma de instaurar ou evitar tais processos, in- dependentemente de essas informações serem recebidas ou obtidas antes, durante ou depois do processo" (art. 34, 2).7
O enfrentamento do problema exige uma reflexão acerca da atividade de advocacia.
A definição do ato típico de advocacia não é simples, uma vez que a dinâmica da profissão abarca atividades distintas, heterogêneas e diversificadas. Há o advogado que representa o cliente em contendas judiciais, aquele que se limita a prestar consultoria jurídica, bem como existem bancas e causídicos que mesclam tais afazeres, acrescentando outros distintos, como a representação empresarial, a gestão de fundos, dentre outras. Por isso, a exemplo do diploma europeu mencionado, parece necessária uma categorização para – a partir dela – indicar o estatuto jurídico que incide sobre as atividades desenvolvidas.
5.1. Atividades típicas da advocacia
Nos limites deste estudo, propomos classificar as atividades de advocacia em quatro grandes grupos: i) advogados togados, assim denominados aqueles que representam clientes em contencioso judicial ou extrajudicial; ii) advogados de consultoria jurídica para litígios, que prestam consultoria ou proferem pareceres voltados especificamente a litígios judiciais ou extrajudiciais atuais ou futuros; iii) advogados de consultoria ou assessoria jurídica estrita, que analisam a situação jurídica do cliente ou da operação por ele pretendida, limitando-se à análise ou aconselhamento jurídico, sem relação direta com um litígio; e iv) profissionais de consultoria ou operação extrajurídica, caracterizados como aqueles que assessoram ou colaboram materialmente para operações financeiras, comerciais, tributárias ou similares, sem que tal se limite à análise jurídica (ex. advogado mandatário para atividades extraprocessuais, gestor de fundos, analista financeiro, contador).8
Esta divisão permite averiguar a incidência dos deveres de colaboração com as autoridades públicas para cada modalidade de serviço. Na prática, pode ser difícil separar os atos e identificá-los com clareza, mas a classificação proposta oferece um ponto de partida para o intérprete, que deverá levar em conta as especificidades do caso concreto para determinar a natureza do(s) serviço(s) prestado(s) pelo advogado.
Pois bem, a Lei de Lavagem impõe aos profissionais que prestem consultoria ou assessoria de qualquer natureza o dever de comunicar atos suspeitos de mascaramento de bens ilícitos, quando a atividade se enquadrar dentre as elencadas no inciso XIV do art. 9º do mesmo diploma legal. Tal imposição afeta de maneira diferente as quatro espécies de serviços de advocacia sugeridos.
A Lei de Lavagem impõe aos profissionais o dever de comunicar atos suspeitos de mascaramento de bens ilícitos.
Em primeiro lugar, o advogado togado (i). A nosso ver, esta categoria está exonerada do dever de comunicar porque não se amolda ao enunciado do art. 9º, inciso XIV, da Lei de Lavagem. Aquele que representa alguém em litígio (judicial ou extrajudicial) não exerce atividade de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência. Atua como representante, categoria distinta porque não apenas orienta, mas fala pela parte no processo. Mas, ainda que se entenda – em uma interpretação ampla – que o advogado togado assiste ou assessora seu cliente, certamente não o faz em relação aos atos indica- dos nas alíneas do inciso XIV do art. 9º, de forma que tal atuação está fora já do sentido literal possível de tal dispositivo legal.
Na segunda hipótese, a da consultoria ou assessoria jurídica voltada para a análise da situação jurídica do cliente em processo judicial ou administrativo, atual ou futuro – item (ii) –, a atividade igualmente tem relação íntima com o direito à defesa, uma vez que os serviços prestados serão usados para a definição de estratégia em um litígio, para a tomada de decisões importantes.9 Como ilustra De Grandis (obra citada, p. 129), é o caso do advogado procurado por cliente para prestar orientação sobre a conveniência de uma delação premiada, por exemplo. Aqui se trata do oferecimento de informações para desenvolvimento de estratégia processual ou para a delimitação do contexto jurídico no qual se desenvolve determinada operação. Assim, um parecerista ou um consultor que colaboram com a defesa do réu orientam sua atuação em processo específico, atual ou futuro, necessitam das mais precisas informações para a elaboração de um trabalho completo. E a exigência de comunicar atividades suspeitas às autoridades públicas inibiria o fornecimento destas informações e, consequentemente, restringiria a possibilidade de uma correta orientação jurídica, a qual, em última instância, afetaria diretamente o direito à defesa técnica.
Outra categoria é a da consultoria jurídica sem vinculação direta com processo específico ou futuro – item (iii). Trata-se do advogado que presta aconselhamento jurídico a cliente para estruturação de operações tributárias, societárias, de gestão de fundos e similares, sem que exista um litígio em andamento ou a antevisão clara de seu uso para disputa judicial ou extrajudicial futura. Nesse caso, pela ausência de uma relação clara com o direito de defesa, haveria o dever de comunicar atos suspeitos praticados pelo consulente. Essa parece ser a lógica dos documentos internacionais expostos: separar as atividades de consultoria jurídica entre aquelas ligadas a um processo e aquelas sem relação com litígio, atrelando apenas a primeira ao direito a defesa e, por isso, exonerando-a dos deveres de comunicação. A segunda não estaria excluída das obrigações de informação.
Parece-nos que a distinção tem de ser vista cum grano salis.
De um lado, dificilmente será possível desvincular tal serviço de um potencial litígio atual ou futuro. Mesmo na consultoria aparentemente desvinculada do contencioso é possível e plausível considerar a possibilidade de um litígio, do contrário sequer seria necessária a prestação da assessoria jurídica. A razão de uma análise jurídica em uma estruturação tributária, comercial, financeira, ou outra, é a de evitar ou proteger a parte consulente de contendas com o Fisco, com outras instituições, com a contraparte, ou mesmo com a Justiça Penal. Onde houver impossibilidade de separação clara, prevalece a proteção da relação de confiança cliente-advogado, protegida pelo sigilo e pela inviolabilidade.
De outro, há dispositivo legal da mesma hierarquia e especial com relação à Lei de Lavagem tratando da prestação de consultoria jurídica. Imaginando que fosse possível uma rígida distinção entre a consultoria voltada a litígio específico e a consultoria estrita (sem vinculação a um processo), em relação à última, incidiria a obrigação de comunicar atos suspeitos de lavagem, uma vez que tal consultoria poderia estar dentre as previstas nas alíneas do inciso XIV do art. 9º da Lei de Lavagem. Assim, por exemplo, aquele que presta consultoria jurídica em operações de compra e venda de imóveis (art. 9º, parágrafo único, inciso XIV, alínea a), indicando o uso de uma offshore como melhor forma de evitar a incidência de tributos em caso de sucessão, ou aquele que sugere a criação de fundos em determinado país dada a inexistência de leis de cooperação internacional na seara fiscal (alínea b), poderia vir a ser submetido10 ao dever de comunicar às autoridades públicas a operação desde que suspeitasse que ela servisse à ocultação de bens de origem ilícita. Parece-nos que, mesmo nesses casos, não incide o dever de comunicação. E a razão é simples: ainda que a Lei de Lavagem estabeleça em seu art. 9º um rol de atividades submetidas à colaboração com as autoridades, e que deste rol conste a assessoria ou a consultoria de qualquer natureza nas atividades ali relacionadas, existe outra lei da mesma hierarquia (lei 8.906/1994) que regulamenta precisamente um tipo especial de consultoria: a jurídica. O art. 1º do EOAB estabelece – de forma cristalina – as atribuições sobre as quais incide aquele texto legal, dentre as quais as "atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas".
Dessa forma, o exercício da atividade consultiva, de assessoria ou direção jurídica – pela regra da especialidade – é regido por este último diploma legal (lei 8.906/94), e apenas subsidiariamente pelo primeiro (lei 9.613/98), ali onde não haja conflito. Há, porém, um conflito aparente relativamente ao tratamento das informações recebidas em decorrência do exercício da profissão. Enquanto a Lei de Lavagem exige a comunicação de operações suspeitas conheci- das em razão da atividade profissional, a lei 8.906/94 determina o sigilo das mesmas informações, inclusive facultado ao advogado a recusa em depor como testemunha sobre fato que constitua objeto do sigilo profissional (art. 7º, inciso XIX), bem como instituindo a inviolabilidade do escritório, local de trabalho, instrumentos e cor- respondência, protegendo documentos, mídias, objetos e informações entregues pelo cliente (art. 7º, inciso II e § 6º), a não ser que ele seja formal- mente investigado como concorrente para o crime praticado pelo cliente.
A inviolabilidade das informações do cliente sob custódia do advogado – exceto nos casos em que o advogado está envolvido na prática delitiva – é incompatível com o dever de informar. A inviolabilidade abrange "não apenas o que lhe for confiado (ao advogado), mas tudo que lhe chegue ao conhecimento em consequência do exercício profissional" (RAMOS, 2013, p. 413). Como indicar que dados e informações de um cliente estão protegidos até mesmo de ordem judicial de busca e apreensão e, ao mesmo tempo, obrigar o profissional a entregá-los – sponte propria – às autoridades públicas, mesmo na ausência de investigação ou ordem judicial?
Tal seria possível se a Lei de Lavagem – aprovada posteriormente ao EOAB – tivesse revogado explícita ou implicitamente a inviolabilidade. Mas isso não ocorreu. Uma breve análise das hipóteses de revogação de leis, previstas na Lei de Introdução do Código Civil (lei 4.657/42), revela que o fenômeno se dá apenas quando a lei posterior i) declare expressamente a revogação da anterior; ii) seja com ela incompatível; ou iii) regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (art. 2º).
A obrigação de informar imposta aos consultores de qualquer natureza foi inserida na Lei de Lavagem em 2012, por meio das alterações nela efetuadas pela lei 12.683/12, ou seja, trata-se de uma obrigação estabelecida por uma lei posterior ao EOAB, que revogaria a confidencialidade e a inviolabilidade da relação advogado-cliente, caso uma das hipóteses previstas acima fosse verificada. O que, s.m.j., não parece ser o caso.
Não se trata de revogação expressa, uma vez que a Lei de Lavagem não faz menção ao EOAB. Também não parece haver incompatibilidade ou regulação diversa do mesmo tema, porque o dever de comunicar imposto na lei posterior trata do gênero consultoria de "qualquer espécie" enquanto a lei anterior trata da espécie "consultoria jurídica". Há uma relação de regulação genérica e específica que afasta a revogação implícita do diploma que disciplina a advocacia. Ao contrário, a faz prevalecer pelo princípio da especialidade.
Fosse a Lei de Lavagem expressa sobre o dever do advogado de comunicar operações suspeitas, poder-se-ia reconhecer sua superveniência e a relativização da inviolabilidade prevista no EOAB. Ocorre que o dever de comunicação previsto na Lei de Lavagem não menciona a advocacia, é genérico, direcionado às "pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza" nas operações previstas no inciso XIV. Por isso, não trata da espécie.
Como ensina Maximiliano (2011, p. 111), em toda disposição de Direito, o gênero é derrogado pela espécie, que prepondera sobre ele (in toto jure generi per speciem derrogatur, et illud potissimum habetur quod as speciem directum est). A obrigação genérica de comunicação é afastada diante da especialidade do sigilo dirigida ao advogado. Não se discute aqui a importância desta ou daquela disposição legal, nem se faz qualquer análise meritória sobre seu conteúdo. A solução do conflito se faz pela regra da especialidade, concluindo-se pela vigência do dever de sigilo em sobreposição ao dever genérico de comunicar previsto no diploma em estudo.
Mesmo sob o ponto de vista do conteúdo de tal dever, sua imposição ao advogado que exerce as funções típicas previstas na lei 8.906/94 macularia profundamente relação de confiança entre o profissional e o cliente, e, por consequência, turbaria o desempenho da função atribuída aos advogados pela Constituição e pela lei.
Vale notar que a Organização das Nações Unidas já declarou, em seus Princípios Básicos Relativos à Função dos Advogados,11 que os governos devem reconhecer e respeitar a confidencialidade de todas as comunicações e consultas feitas entre os advogados e seus clientes no âmbito das suas relações profissionais (item 22). Assim, não pode o advogado se tornar um "policial encoberto sob o manto da relação profissional" (GOMEZ-JARA DÍEZ, obra citada, p. 219). Uma coisa é a imposição do dever de abstenção ao advogado, vedando sua colaboração com qualquer ato de lavagem de dinheiro. Outra é tratá-lo como informante para o combate do delito, situação que impede – de antemão – a construção de qualquer mínimo vínculo de confiança entre ele e o cliente, imprescindível para a atividade profissional.
O advogado não tem a obrigação de avisar autoridades sobre condutas que lhe cheguem a conhecimento.
Aquele que presta consultoria jurídica de qualquer espécie está exonerado do dever de comunicar previsto na Lei de Lavagem. Isso não significa, por óbvio, um salvo-conduto para a prática ou a colaboração em atos ilícitos. Afastar o dever de comunicar não significa afastar o dever de abstenção da prática de atos que possam configurar auxílio criminoso.12 O advogado não tem a obrigação de avisar autoridades sobre condutas que lhe cheguem a conhecimento, mas tem o dever absoluto de cessar qualquer assessoria ou orientação se perceber que pode estar concorrendo para a prática de ilícito.13
Por fim e no sentido oposto, se prestar algum tipo de consultoria não jurídica, não estará atuando sob o regime jurídico do EOAB. Trata-se das atividades descritas no item (iv), ou seja, quando o advogado age como administrador de bens, mandatário para representação não processual, como gestor de negócios, ou presta consultoria em questão não jurídica, aqui incidem os deveres previstos nos arts. 10 e 11 da lei 9.613/98 (CERVINI; ADRIASOLA, 2013), uma vez que tais atividades extrapolam o âmbito daquelas previstas no EOAB.14
Em outras palavras, o advogado que exerce as funções típicas e privativas da advocacia, expressas no art. 1º da lei 8.906/94 (postulação judicial, consultoria, assessoria e direção jurídicas), está exonerado das obrigações previstas na Lei de Lavagem. Aquele que atua em outra seara e presta consultoria distinta da jurídica submete-se aos deveres impostos pela lei 9.613/98 (art. 9º, inciso XIV), devendo submeter-se às normas regulamentares pertinentes, editadas pelo Coaf ou por outro órgão regulador.
5.2. Atividades mistas e dever de comunicação
Além da assessoria e colaboração material para operações financeiras, comerciais, tributárias ou similares, sem que tal se limite à análise jurídica (cf. supra "profissionais de consultoria ou operação extrajurídica"), que podem ser prestadas também por advogados, não é de todo incomum que tais profissionais ofereçam ainda serviços de outras naturezas a par de serviços legais, estes protegidos pelas prerrogativas da profissão. Tal é o caso, por exemplo, de advogados que prestam serviços legais e também serviços de contadoria; serviços legais e serviços ligados a transações imobiliárias, etc.
O EOAB proíbe apenas a "divulgação de advocacia em conjunto com outra atividade" (art. 1º, § 3º), mas não que o advogado também exerça outras atividades profissionais, como as anteriormente indicadas. O Código de Ética silencia sobre o tema.
Caso o advogado preste serviços legais e simultaneamente exerça atividade dentre as indicadas no art. 9º da lei 9.613/98 (adiante, também, Lei de Lavagem), estará sujeito à regulamentação do setor e, assim, parte de suas atividades estará sujeita às medidas de controle e prevenção da lavagem de capitais, dentre elas a de comunicar operações suspeitas.
Há, inclusive, precedente nesse sentido do TRF da 1ª Região. Tratava-se de sociedade de advogados que também exercia assessoramento para a compra e venda de imóveis e que postulava, em mandado de segurança, sua não submissão à regulamentação do setor imobiliário (à época regulado pela Resolução Coaf 14/2006). O tribunal decidiu que, nessa capacidade, a sociedade não exercia atividade típica da advocacia, razão pela qual deveria se submeter às disposições da resolução.15
Quando o advogado presta serviços típicos da advocacia e não típicos (como no caso do precedente acima indicado) ao mesmo cliente tendo por base os mesmos fatos ou negócios, poderá se tornar extremamente difícil diferenciar as informações que recebe nessas duas capacidades para fins de comunicação de operações suspeitas ao Coaf, com o que se vê debilitado, se não totalmente comprometido, o âmbito do sigilo profissional.
Em situações tais, em verdade, trata-se, já prima facie, de caso de conflito de interesses, posto que o advogado, diante de situação de obrigatoriedade de comunicação, ou a fará sem que possa advertir o cliente sobre isso (art. 11, inciso II, lei 9.613/98) ou, em não a fazendo, ver-se-á sujeito a eventual aplicação de sanção administrativa (art. 12 do mesmo diploma).
A matéria merece, como se vê, manifestação específica por parte da Ordem dos Advogados do Brasil, pois se trata aqui da transparência e da lealdade dos advogados frente a seus (potenciais) clientes.
6 Reconhecimento de honorários e lavagem de capitais
6.1. Recebimento de honorários e as figuras típicas da lei 9.613/98
O objeto de análise deste tópico é exclusivamente a hipótese de advogado contratado para a defesa de investigado, suspeito ou acusado de infração penal, cuja contratação reflete a efetiva prestação de serviços e a questão do recebimento de honorários, cujo pagamento pode ser feito com recursos oriundos, direta ou indiretamente, da prática de crimes.16
A discussão sobre o tema não é nova e tem sido objeto, inclusive, de pronunciamentos judiciais em países ocidentais com os quais nosso ordena- mento jurídico-penal tem alguma familiaridade, como é o caso da Alemanha,17 por exemplo. Em nosso país, recebeu trabalho monográfico específico já em 2010 (SÁNCHEZ RIOS, obra citada).18 Não raro, portanto, consulta-se a literatura e a jurisprudência de países como a Alemanha ou a Espanha em busca de subsídios para compreender o conteúdo dos tipos penais relativos à lavagem de capitais e, até, proceder à exegese de nossa própria legislação na matéria à luz desse material. Aí reside um grave perigo, que macula a premissa básica de qualquer ulterior dedução quando se trata do tema ora sob análise: tanto na Alemanha19 como na Espanha,20 incrimina-se (também) o mero recebimento ou guarda de produtos oriundos da prática de infração penal anterior, ainda que oriunda de culpa (grave).21
Mas essa não é a situação legal brasileira. Aqui não se pune a título de lavagem de capitais a mera guarda ou recebimento de valores provenientes da prática anterior de infração penal. Também não está prevista a punibilidade da forma culposa. O que há é a punibilidade da modalidade dolosa de guarda, recebimento, aquisição, etc., exclusivamente "para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal" (art. 1º, § 1º, inciso II, lei 9.613/98).22 Ou seja, com uma finalidade específica, uma direção clara da conduta.
Mas qual a razão de o tema não ter tanta repercussão quando, por exemplo, se trata de um médico ou um dentista que recebe honorários maculados de um paciente sob tratamento?
A razão é evidente e sua resposta deriva das questões anteriormente tratadas sobre a essencial relação de confiança, essencial ao adequado desempenho da assistência jurídica prestada por advogados no âmbito penal: os advogados devem conhecer todos os elementos essenciais ao exercício da defesa técnica na esfera penal. Dentre esses elementos poderão estar elementos acerca da origem do patrimônio do cliente e, a depender da acusação (se pela prática de crimes que geram produto econômico), poderá ter informação direta ou claros indícios de que os valores que o cliente utilizará para pagar por seus serviços serão oriundos, direta ou indiretamente, da prática de crimes.
Enquanto para o médico ou para o dentista não é pressuposto essencial para a prestação de seus serviços obter informações sobre o patrimônio de seus pacientes, tal informação pode ser relevante para o defensor privado que vá exercer a defesa de cliente acusado ou investigado pela prática de crime que gere proveito econômico.
É por esta razão que o tema se coloca com tanta intensidade nos países que punem como lavagem a mera guarda ou recebimento de valo- res oriundos de prática criminosa e ainda o fazem também na modalidade culposa.
Não custa repetir: esse não é o caso de nossa legislação, que não pune como lavagem de capitais o mero recebimento, muito menos na modalidade culposa.
Também sob o ponto de vista da figura típica inscrita no art. 1º, § 2º, inciso I, da lei 9.613/98, não encontra subsunção o recebimento de honorários por serviços efetivamente prestados (nem pelo advogado, nem pelo médico, nem pelo dentista, etc.).23 Trata-se da modalidade típica de utilização, na atividade econômica ou financeira, de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal. É evidente que não se pode interpretar essa figura típica fora do contexto do processo de lavagem de capitais (aquele conjunto de atos direcionado a inserir na economia formal valores oriundos da prática de crimes precedentes como se tivessem origem lícita). A uma porque a própria interpretação sistemática do art. 1º indica uma gradação de ataque ao bem jurídico (Administração da Justiça, especificamente no que tange aos interesses ligados à implementação e execução das medidas cautelares patrimoniais do Código de Processo Penal), que caminha das menos graves às mais graves: desde a mera ocultação (caput), passando pela transformação (§ 1º) até a integração (§ 2º). A duas porque, se se tratasse aqui da mera "utilização" para qualquer finalidade de produtos de infração penal antecedente, estar-se-ia negando vigência à limitação típica imposta pela cláusula "na atividade econômica ou financeira", justamente a que evidencia que se cuida aqui da punibilidade da última fase da lavagem – a mais grave sob o ponto de vista do alcance dos ativos criminosos por medidas cautelares patrimoniais do processo penal –, a integração: a incorporação formal dos ativos ao sistema econômico por, para ou no interesse do titular dos ativos criminosos. A três porque a interpretação de que se trata também de mero recebimento conduziria a ter de afirmar a atipicidade quando o receptor dos valores não os utilizasse em sua atividade econômica, mas, sim, em outras atividades privadas (não econômicas), o que não faria o menor sentido fosse o intento do legislador proibir o recebimento de valores oriundos da prática de crime por si só.24
O novo Código de Ética não contempla regras relativas aos pontos de contato entre advocacia e lavagem de capitais diretamente.
Por fim, evidentemente diversa é a situação do advogado que recebe os valores a título de honorários e os devolve parcialmente como suposto empréstimo ou pagamento de serviços inexistentes ao cliente, contribuindo para seu mascaramento (BOTTINI, BADARÓ, obra citada, p. 125; SÁNCHEZ RÍOS, p. 145; DE GRANDIS, p. 133).
Neste caso, a conduta do profissional consolida o ato de reciclagem, caracterizando-se como típica conduta de lavagem de dinheiro.
6.2. Conflito de interesses
O novo Código de Ética não contempla regras relativas aos pontos de contato entre advocacia e lavagem de capitais diretamente.25 Perdeu-se uma boa oportunidade para tratar de frente uma problemática que tem se agravado paulatinamente, especialmente nos últimos dez anos.26
A situação de insegurança que pode ser criada pela ilegal (v. item 6.1) consideração do recebimento de honorários como subsumível a alguma figura típica de lavagem de capitais e as consequentes medidas (no mínimo) investigativas que podem ser tomadas contra advogados gera, certamente, posição de conflito de interesses para o advogado, o qual, segundo o disposto no art. 9º do Código de Ética, deverá imediatamente denunciar a situação a seu constituinte e, se o caso, renunciar à defesa.
A criação potencial de conflito de interesses gerada pela possibilidade de o advogado estar sempre submetido ao risco de ser investigado em função do recebimento dos seus honorários tem implicação direta com diversos direitos e garantias que interessam diretamente à própria Administração da Justiça (cf. art. 133, Constituição Federal), bem jurídico este justamente tutelado pela Lei de Lavagem. 27
Ademais, no âmbito específico da defesa penal, isso pode levar a um comprometimento da efetividade da defesa, posto que muitos advogados podem acabar renunciando a tomar conhecimento de fatos essenciais à defesa efetiva de seus representados para que possam receber pelos serviços prestados.
Mais grave. O quadro coloca na mão das autoridades persecutórias um poderoso instrumento para influir na formação da equipe de defesa de um investigado ou acusado, bastando, para tanto, que dirijam atividades investigativas sobre o recebimento de honorários contra um ou mais de seus defensores, os quais deverão se afastar da condução da causa.28
6.3. Contrato de honorários e sigilo profissional
Uma das medidas preventivas comumente indicadas para evitar questionamentos dessa natureza por parte das autoridades encarregadas da persecução penal é a elaboração de contrato escrito de honorários profissionais, no qual esteja incluído, com a maior precisão possível, o objeto da prestação de serviços.
A orientação está em conformidade com o que dispõe o art. 48 do Código de Ética, que recomenda constar do instrumento contratual o objeto da prestação de serviço, com esclarecimento da extensão do patrocínio, especificamente dos atos processuais cobertos ou excluídos pela contratação.
Ocorre que, em hipóteses particulares, o detalhamento do serviço a ser prestado pode implicar revelação da estratégia defensiva, o que, pelo que se viu (cf. item 3), é justamente o objeto sobre o qual (também) recai o sigilo profissional. Não é difícil imaginar que, ao cumprir o dever de detalhar o objeto da contratação, possa o advogado se ver diante da necessidade de especificar a adoção de medidas estratégicas sob o ponto de vista da defesa, como a impetração de habeas corpus nesta ou naquela instância, acompanhamento e atuação em acordo de colaboração premiada, pleito de medidas protetivas para testemunhas, etc.
Se instado a apresentar tal documento em sua própria defesa em investigação acerca da licitude dos honorários recebidos, estará acobertado por clara hipótese de justa causa para a quebra do sigilo profissional, prevista no art. 37 do Código de Ética, todavia poderá prejudicar irremediavelmente o representado, o que, se não poderá ser tido por ilegal, não parece ser medida que atenda à Administração da Justiça.
Aliás, foi ponderação dessa natureza que esteve na base da decisão monocrática do presidente do STF nos autos na Medida Cautelar no HC 129.569 (DJe de 6/8/2015), na qual sua excelência assegurou a confidencialidade da relação entre cliente e advogado, extensiva aos termos da contratação, em caso de convocação por CPI para que prestasse informações justamente sobre os termos do contrato.
Estas ponderações demonstram a seriedade dos interesses em jogo nesta matéria, a qual, em muitas situações, evidencia desproporção entre o que se ganha com a tutela penal nessas situações e o que se perde em termos de garantia da defesa efetiva, para além da altamente plausível ofensa ao núcleo essencial desse direito.29 Em nosso sentir, a matéria deveria ser regulada diretamente por lei, contemplando um balanço equilibrado dos direitos e interesses em jogo, os quais, a rigor, afetam toda a Administração da Justiça Criminal.
7 Conclusão
Em conclusão, o sigilo e a inviolabilidade são elementos estruturantes do exercício da advocacia, derivados da necessária relação de confiança entre cliente e advogado, que é pressuposto sem o qual o advogado não poderá desempenhar as funções que lhe são atribuídas constitucional e legalmente no âmbito da Administração da Justiça. Sigilo e inviolabilidade devem ser resguardados mesmo diante da necessidade de impor a certos profissionais deveres de comunicação de atos suspeitos de seus clientes às autoridades públicas.
O novo Código de Ética e Disciplina da Ordem mantém e protege tais institutos, reconhecendo no escritório e em seus profissionais um porto seguro para os cidadãos que necessitem recorrer à justiça e, pois, à assessoria jurídica. Não se trata de privilégio, mas de prerrogativa estabelecida em prol da Administração da Justiça e, pois, de toda a comunidade interessada em que essa administração se dê sob as regras do devido processo legal, da paridade de armas e de oportunidades entre as partes.
Atividades não abrangidas pelo EOAB, contudo, não estando dirigidas ao cumprimento da função do advogado na Administração da Justiça, estão excluídas desse âmbito de proteção e podem sujeitar o advogado às medidas de prevenção à lavagem de dinheiro. De qualquer forma, o advogado que ultrapassa o âmbito da prestação de serviços lícita e passa a contribuir para práticas criminosas está, evidentemente, sujeito às sanções penais.
O recebimento de honorários maculados não está definido como conduta típica na Lei de Lavagem brasileira. Isso, todavia, não tem impedido que autoridades incumbidas da persecução penal tentem atribuir a prática de conduta criminosa a advogados, especialmente os da área penal, pela suposta prática de lavagem no recebimento de honorários possivelmente maculados submetendo-os a investigações, no bojo das quais muitas vezes são decretadas quebras de sigilos de diversas naturezas que podem colocar em grave risco o sigilo profissional. As medidas ilegais têm de ser combatidas pelo órgão de classe, a OAB, todavia, cada profissional pode tomar medidas preventivas, observando os parâmetros legais e éticos estabelecidos tanto no EOAB como no novo Código de Ética. « Voltar