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Doutrinas > Processo Civil - Advocacia Pública

Poderes do relator no CPC de 2015. Tendência ou abuso?

Autor: Jorge Amaury Maia Nunes
Publicado no site em: 02 de Setembro de 2016
  Parece ser uma epidemia a discussão sobre unipessoalidade ou colegialidade das decisões proferidas no âmbito do Poder Judiciário. No direito francês, em que até as sentenças de primeiro grau são lavradas por órgãos colegiados (ressalvada a juridiction de proximité), a discussão está em plena efervescência em face de investidas feitas contra o princípio da colegialidade. Praticamente todos os recentes manuais de processo civil francês têm algum apontamento sobre o tema1.

No Brasil, sob a égide do CPC de 1973, já se discutia a respeito do fato de que, cada vez menos, as partes tinham acesso a um julgamento colegiado no segundo grau e nas instâncias de superposição. Deveras, sem embargo da regência da lei 8.038, de 1990, que estabeleceu uma espécie de agravo interno geral contra as decisões unipessoais proferidas no âmbito do STF e do STJ — que acabou sendo copiado nos regimentos internos da generalidade dos tribunais ordinários —, o fato é que o julgamento desse agravo era mera formalidade, Julgavam-se, por sessão, centenas de quilos de agravos, sem ao menos haver o pregão do julgamento. Nem partes e, às vezes, nem números de processos eram anunciados.

Progrediram, os tribunais, nessa investida e, em passado mais recente, criaram as chamadas listas que permitiam não mencionar nada. Bastava a publicação da pauta em lista e a ocorrência da sessão indicada para que se tivesse por consumado o julgamento dos feitos com o desprovimento dos recursos opostos.

A utilização do mal estruturado art. 557 do CPC/73, que anabolizou os poderes do relator, virou regra; exceção era o julgamento colegiado.

Com advento do Código de 2015, não se espera mudança significativa nessa tendência de descolegialização das decisões dos tribunais. Ao revés, esse parece ser um caminho sem volta. De outra banda, devemos considerar, pelo menos, o alvissareiro fato de que o novo Código de Processo Civil estruturou a atividade do relator, do ponto de vista normativo, de forma mais sistemática. Com efeito, o art. 932 do CPC atual tratou os poderes de direção, instrução e decisão processual, conferidos ao relator, de maneira mais adequada, além do fato de que deu regência expressa a poderes do magistrado que, antes, eram percebidos apenas por compreensão do sistema e do conceito mesmo da atividade jurisdicional.

É o caso, por exemplo, dos incisos I e II do art. 932, in litteris:

Art. 932. Incumbe ao relator:

I - dirigir e ordenar o processo no tribunal, inclusive em relação à produção de prova, bem como, quando for o caso, homologar autocomposição das partes;

II - apreciar o pedido de tutela provisória nos recursos e nos processos de competência originária do tribunal...

Esses fragmentos não possuíam correspondência no código revogado, sendo que a matéria, às vezes, era tratada no âmbito dos regimentos internos dos tribunais. No caso do inciso I, retrotranscrito, não eram raras as hipóteses em que ministros das cortes superiores se recusavam a homologar transação quando pendente o julgamento de recurso. Admitiam a desistência do(s) recurso(s) e determinavam o retorno dos autos do processo à instância de origem para que o magistrado homologasse o acordo estabelecido entre as partes até então litigantes. No que concerne ao inciso II, a resistência não era tão grande, máxime porque autorizadas vozes doutrinárias — que, concomitantemente, tinham assento em tribunais luzidos2 — manifestaram-se, de logo, no sentido da competência monocrática desses magistrados para conceder a antecipação de tutela, com eventual recurso para o órgão colegiado.

O inciso III cuida, com superioridade em relação ao art. 557 do CPC/73, de hipóteses relativas à possibilidade de não-conhecimento do recurso, concernente aos aspectos formais, normalmente chamados pressupostos recursais (melhor seria dizer pressupostos e requisitos recursais). Eis o teor do fragmento legal sob menção:

III - não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida;

É certo, aqui, que se impõe ao julgador o dever de acatamento da norma contida no parágrafo único do mesmo artigo. Antes de proclamar a inadmissibilidade do recurso, o relator deverá oportunizar, ao recorrente, prazo para sanação do vício ou complementação da documentação exigível.

O magistrado pode, é claro, conhecer do recurso. Isso implica dizer que, em primeiro exame, o relator admite que estão presentes os pressupostos e requisitos que autorizam a apreciação do mérito da irresignação. Em outras palavras, o detentor da jurisdição não encontrou razões que o autorizassem a proclamar a incidência da norma encartada no inciso III, antes reproduzido.

No exame do mérito recursal, certamente que duas hipóteses excludentes se apresentam: provimento ou desprovimento, total ou parcial. O legislador de 2015, também aqui acertadamente, separou as hipóteses que impõem a negativa de provimento (inciso IV) das hipóteses que permitem o acolhimento da irresignação (inciso V).

No primeiro caso, estabeleceu o legislador que cabe ao relator:

IV - negar provimento a recurso que for contrário a:

a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;

b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;

c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

É deveras importante anotar, aqui, que o legislador do CPC/15 demitiu-se do poder de estabelecer a regra tal qual estava encartada no art. 557 do código pretérito (“confronto com jurisprudência dominante”), dado o alto grau de incerteza que a expressão carregava. Em lugar disso, buscou parâmetros dotados de maior densidade e de menor possibilidade de hesitação quanto à aplicabilidade: súmula, acórdão proferido em RE e Resp repetitivos, ou entendimento firmado em IRDR ou assunção de competência.

Justamente para fazer mercê aos cuidados do legislador, o julgador deverá indicar qual súmula está sendo contrariada e por que está sendo contrariada pelo recurso; deverá especificar qual acórdão firmado em julgamento de repetitivo sustenta tese contrária ao recurso; ou demonstrar que a situação recorrida se ajusta ao que deliberado no recurso repetitivo. Da mesma maneira, procederá se a hipótese disser respeito a entendimento firmado em IRDR ou assunção de competência. Não basta sinalizar a hipótese; há que ocorrer a demonstração da pertinência do precedente invocado em face do caso recorrido.

Se não estiver presente alguma dessas hipóteses, o relator deverá, mesmo com convicção absoluta de que ocorrerá o desprovimento, abster-se do julgamento unipessoal e submeter o recurso ao exame do órgão colegiado competente.

O inciso V cuida das hipóteses em que o julgador pode, isoladamente, dar provimento ao recurso aviado, isso, se o caso, depois de facultada a apresentação das contrarrazões do recorrido. São três as hipóteses de provimento que dispensam o julgamento pelo órgão colegiado: se a decisão recorrida for contrária a (i) súmula do STF, do STJ ou do próprio tribunal; (ii) acórdão proferido pelo STF ou pelo STJ em julgamento de recursos repetitivos; (iii) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência.

Até para o leitor menos atento fica fácil perceber que as hipóteses indicadas nas alíneas “a” a “c” do inciso V, ora sob menção, possuem a mesma redação das alíneas do inciso IV. O que muda é apenas a dicção da cabeça dos dois incisos. No inciso IV (que permite negar provimento ao recurso), está dito “negar provimento a recurso que for contrário”. No inciso V, não é posto em destaque o recurso e, sim, a decisão recorrida, haja vista que, aqui, a regência é relativa a situações de provimento do recurso. Por isso, a redação: “... dar provimento ao recurso se a decisão recorrida for contrária a:”

Ainda dentro do tema, mas especificamente quanto ao agir do relator no âmbito do STF e do STJ, cabe verificar a possibilidade de o relator (de uma dessas duas cortes), insuladamente, atuar no âmbito do julgamento do agravo que visa a conferir trânsito a recurso extraordinário ou especial. Diz o art. 1042, do CPC/15:

Art. 1.042. Cabe agravo contra decisão do presidente ou do vice-presidente do tribunal recorrido que inadmitir recurso extraordinário ou recurso especial, salvo quando fundada na aplicação de entendimento firmado em regime de repercussão geral ou em julgamento de recursos repetitivos

......

§ 4º Após o prazo de resposta, não havendo retratação, o agravo será remetido ao tribunal superior competente.

§ 5º O agravo poderá ser julgado, conforme o caso, conjuntamente com o recurso especial ou extraordinário, assegurada, neste caso, sustentação oral, observando-se, ainda, o disposto no regimento interno do tribunal respectivo.

É preciso especificar com mais cuidado o objeto de nossa preocupação, haja vista que o caput do art. 1.042 enseja o cabimento de dois recursos: (i) se o presidente ou vice-presidente do tribunal recorrido nega seguimento a recurso extraordinário ou especial e sua decisão está fundada na aplicação de entendimento firmado em repercussão geral ou em julgamento de recursos repetitivos, não cabe falar em agravo para as instâncias de superposição. O recurso cabível será o agravo interno de que cuida o art. 1.201 do CPC/15, dirigido ao colegiado competente do próprio tribunal ordinário, tudo isso por força do disposto no § 2º do art. 1.030 do mesmo codex; (ii) se o presidente ou vice-presidente não admite o recurso por qualquer outro motivo além do retroindicado, cabe agravo para o próprio prolator da decisão, que poderá exercer juízo de retratação. Se não o fizer, remeterá os autos, com o agravo, ao tribunal superior competente.

É a respeito dessa última hipótese que incide nossa investigação. A lei processual sugere que, se for o caso, o agravo poderá ser julgado juntamente com o recurso especial ou extraordinário, assegurada, neste caso, sustentação oral, observando-se, ainda, o disposto no regimento interno do tribunal respectivo. Ora, da leitura do dispositivo supra, parece decorrer a impossibilidade de julgamento monocrático, no caso, do recurso especial ou extraordinário, sendo necessário possibilitar a sustentação oral dos interessados perante órgão colegiado.

No mesmo sentido do que aqui defendido, sustenta Edilson Pereira Nobre Júnior que, nessas hipóteses, contrariamente ao que previsto no CCP/73, “não mais poderá o relator proferir decisão monocrática para, em conhecendo o agravo, prover o recurso, mesmo sob a alegação de harmonia da pretensão recursal com súmula ou jurisprudência dominante.”3

É bem verdade que seria possível tentar compatibilizar o § 5º do art. 1.042 com o comando do art. 932, V, que cogita das hipóteses em que pode o relator dar imediato provimento ao recurso, mas somente nas hipóteses ali enunciadas.

Nesse ponto deveriam cessar os triplos carpados hermenêuticos de que falava o ministro Carlos Brito. Ocorre que o STJ tem se investido de poderes legislativos ao arrepio do princípio da separação dos poderes, extrapassando os limites da função jurisdicional, sem que a tanto esteja autorizado pelo texto magno. Com efeito, aquela Corte fez publicar recentemente, certos enunciados ditos administrativos, que mal disfarçam a vocação legiferante, sobre a interpretação que deverá dar ao novo CPC, se e quando o Tribunal for instado a examinar algum caso concreto.

Fez pior, ainda, ao ajustar o seu regimento interno ao novo CPC, de uma forma quase revogatória de certos artigos do Código, alterando-os ou, pelo menos, reduzindo seu âmbito de vigência.

O regimento ressuscita, por exemplo, a tal jurisprudência dominante como hipótese permissora de julgamento monocrático por parte do relator, para negar ou dar provimento a recurso, conforme o caso. Ora, o legislador de 2015 suprimiu essa possibilidade, justamente pela fluidez da expressão, que não era capaz de atribuir segurança e previsibilidade dos comandos judiciais ao maior interessado, o jurisdicionado. Se a norma processual estabelece as situações em que o julgamento deva ser colegiado, não cabe competência residual aos regimentos internos para deliberar de forma diferente.

Demais disso, sem embargo de o CPC/15 conter norma expressa (art. 1.070) determinando o prazo de quinze dias para o aviamento de qualquer agravo regimental, tanto o STF quanto o STJ, que já editaram emendas regimentais para ajustar-se ano novo CPC, mantiveram, no artigo 3174 (STF) e no art. 2585 (STJ), o prazo de cinco dias para o oferecimento de agravo contra decisão unipessoal!

Valei-nos, Irnerio, Lucerna Iuris.

Fonte: Migalhas « Voltar