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O NCPC e a antinomia em matéria de verba honorária da Fazenda Pública em Execução Fiscal
Autor: André CastroPublicado no site em: 15 de setembro de 2016 Como cediço, o novo CPC, instituído pela lei 13.105/15, trouxe inúmeras alterações relevantes, entre elas o critério de fixação de verba honorária a ser aplicada nos processos em que figure a Fazenda Pública.
A partir de tal critério, adota-se percentuais escalonados, a serem aplicados de acordo com o valor da condenação/proveito econômico e grau de zelo do profissional, trabalho desempenhado e tempo exigido para tanto. Eis os termos em que positivado o referido critério - art. 85, §3º, do CPC/15:
“Art. 85 – (...)
§ 3o Nas causas em que a Fazenda Pública for parte, a fixação dos honorários observará os critérios estabelecidos nos incisos I a IV do § 2o e os seguintes percentuais:
I - mínimo de dez e máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido até 200 (duzentos) salários-mínimos;
II - mínimo de oito e máximo de dez por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de 200 (duzentos) salários-mínimos até 2.000 (dois mil) salários-mínimos;
III - mínimo de cinco e máximo de oito por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de 2.000 (dois mil) salários-mínimos até 20.000 (vinte mil) salários-mínimos;
IV - mínimo de três e máximo de cinco por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de 20.000 (vinte mil) salários-mínimos até 100.000 (cem mil) salários-mínimos;
V - mínimo de um e máximo de três por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de 100.000 (cem mil) salários-mínimos.” (g.n.)
Note-se que os termos “condenação” e “proveito econômico” mencionados em cada inciso denotam, em consonância com o caput do citado §3º, que tais percentuais devem ser aplicados seja a Fazenda Pública vencedora ou vencida.
Tais disposições do novel Diploma Processual inovam ao estabelecer critério específico de cobrança de verba honorária para o caso de a Fazenda Pública restar vencedora, uma vez que o antigo CPC (1973)1 estabelecia critério específico (equitativo) apenas para o caso de revés fazendário.
De fato, nos termos do CPC/73, a hipótese de êxito fazendário não dispunha de previsão específica quanto ao critério de fixação de verba honorária, sujeitando-se ao critério geral, previsto aos processos de pessoas naturais e jurídicas, de direito publicou ou privado, no patamar de 10% a 20% sobre o valor da condenação (art. 20, §3º).
Ausente previsão específica sobre o tema para a hipótese de êxito fazendário, no âmbito das Execuções Fiscais, a regra geral prevista no CPC/73 era preterida face ao disposto no decreto-lei 1.025/69.
Referido decreto-lei fixa percentual (de 20%) a título de honorários advocatícios2, devidos pelo contribuinte na cobrança de dívida tributária e não tributária, encargo fixado sobre o valor do crédito, por ocasião da sua inscrição em dívida ativa.
No entanto, com o advento do CPC/15, havendo disposição específica de critério de fixação de verba honorária em caso de êxito da Fazenda Pública, introduziu-se no Ordenamento Jurídico norma conflitante com o disposto no decreto-lei 1.025/69.
Importante frisar que, a despeito do art. 1º, do referido decreto-lei 1.025/69, fixar a cobrança do encargo (de 20%) sob o vocábulo de “taxa”, existem sólidos pronunciamentos do Poder Judiciário reconhecendo a sua natureza jurídica de honorários advocatícios.
A exemplo disso, verificam-se (i) entendimento erigido pela 1ª seção do STJ, em regime dos Recursos Representativos da Controvérsia (art. 543-C, do CPC/73 - REsp 1.143.320/RS3, (ii) Súmula 168, do Tribunal Federal de Recursos4, e (iii) Arguição de Inconstitucionalidade julgada perante o TRF da 4ª região5.
A próprio legislação reconhece a natureza de verba honorária do acréscimo previsto pelo decreto-lei 1.025/69, conforme previsto no decreto-lei 1.645/786.
Não poderia ser diferente, pois, caso o acréscimo de que trata o decreto-lei 1.025/69 fosse interpretado como taxa, decorrente de eventual prestação de serviço público divisível, mostrar-se-ia insubsistente a cobrança sob tal titularidade, uma vez que seu percentual é aplicado sobre expressão econômica (base de cálculo) que não tem relação com o custo da suposta atuação estatal.
Melhor dizendo, no caso do decreto-lei 1.025/69, como ponderado acima, o acréscimo é exigido no momento da inscrição (registro) do débito em dívida ativa. Trata-se, portanto, de providência que se limita a registrar os dados do débito em controle interno da Administração Pública, para fins de cobrança executiva.
Logo, para a realização do “suposto” serviço, o ônus da Administração Pública não se altera em razão do número de dígitos do valor a ser inscrito. Não há maior ou menor relevância do trabalho estatal, em decorrência do valor envolvido, uma vez que tal providência não demanda juízo de valor.
Nesse contexto, atribuir ao referido acréscimo de 20% a natureza tributária de taxa, sujeitá-lo-ia às comungadas lições doutrinárias e pacífica jurisprudência do STF7, no sentido de que há inconstitucionalidade da taxa quando “não corresponder a efetivo exercício de poder de polícia ou a serviço prestado ao contribuinte”.
Como viés derradeiro à confirmação da natureza de verba honorária do encargo em questão, surge a recentíssima lei 13.327/16, que “altera a remuneração de servidores públicos e dispõe sobre honorários advocatícios de sucumbência das causas em que forem parte a União, suas autarquias e fundações”.
De acordo com referido normativo, ratifica-se que o encargo instituído pelo decreto-lei 1.025/69 tem a natureza de verba honorária, ao dispor:
Art. 29. Os honorários advocatícios de sucumbência das causas em que forem parte a União, as autarquias e as fundações públicas federais pertencem originariamente aos ocupantes dos cargos de que trata este Capítulo. (...)
Art. 30. Os honorários advocatícios de sucumbência incluem: (...)
II - até 75% (setenta e cinco por cento) do produto do encargo legal acrescido aos débitos inscritos na dívida ativa da União, previsto no art. 1o do Decreto-Lei no 1.025, de 21 de outubro de 1969;”. (g.n.)
Em suma, estivesse o decreto-lei tratando de taxa, não haveria que se falar em conflito de normas. No entanto, considerando que o encargo a que se refere o citado decreto-lei tem natureza jurídica de honorários advocatícios, observa-se, atualmente, haver antinomia8 entre o decreto-lei 1.025/69 e o CPC/15.
E qual dos normativos há de prevalecer?
De acordo com lições de Maria Helena Diniz, a antinomia jurídica, em sendo “fenômeno muito comum entre nós ante a incrível multiplicação das leis”9, não será “removida pela ciência do direito, mas deve constituir um estímulo ao aplicador para ver se ela pode ser eliminada por meio de técnica interpretativa”10(g.n.).
Essa “técnica interpretativa” deve ser exercida a partir de premissas doutrinárias, que sugerem a análise das normas conflitantes quanto aos seus critérios cronológico, hierárquico e de especialidade.
O critério (cronológico) prescinde de maiores análises, porquanto, lex posterior derogat legi priori. À evidência, conclui-se pela preferência à aplicação do CPC/15.
Quanto a esse critério, destaca-se o disposto no art. 2º, do decreto-lei 4.657/42 (LICC, atualmente denominado Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro):
“Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. (...)” (g.n.)
No tocante ao segundo critério (hierárquico), também se conclui pela preferência à aplicação do quanto estabelecido no Diploma Processual.
O entendimento de preferência hierárquica do disposto no CPC/15 ao decreto-lei 1.025/69 não decorre do simples fato de o primeiro resultar de disposição legal e o segundo de ato do Poder Executivo.
À época em que editado, decreto-lei 1.025/69 representava via normativa adequada para veicular a matéria (instituir cobrança da verba honorária), porém, revela-se que sequer emanou do exercício da competência atribuída ao Presidente da República pela CF então vigente (CF/67, com redação pela EC/69)11.
Trata-se, na verdade, de medida emanada de Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e Aeronáutica Militar, por força do Ato Institucional nº 5 (1968), que impôs em seu art. 2º, §1º, verbis:
“Art. 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.
§ 1º - Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios.” (g.n.)
Diante desse cenário, a despeito do Poder Judiciário ter reconhecido que a CF/88 recepcionou o decreto-lei nº 1.025/69, entende-se pela sua deferência hierárquica ao conteúdo do novel CPC/15, não somente em razão do débil expediente adotado para edição do decreto-lei, mas, sobretudo, pelo fato de que a previsão da matéria (fixação de verba honorária) em regime legal atende de forma mais apropriada os requisitos formais do atual Ordenamento Jurídico.
Superada a análise dos critérios formais, tem-se o critério de especificidade, de ordem material, cujo cotejo também direciona à aplicação do critério previsto no CPC/15 (em detrimento do disposto no decreto-lei nº 1.025/69).
Muito se deve ao fato de que, por ter sido editado há praticamente meio século (!), o critério de fixação de verba honorária do decreto-lei nº 1.025/69 está muito distante da realidade socioeconômica contemporânea e, justamente por essa razão, não pode ser considerada norma “especial” para regulamentar a matéria frente ao novo CPC.
De fato, de 1969 aos dias atuais, houve aumento vertiginoso do volume de Execuções Fiscais, aumento que é fruto do cenário social que, na mesma magnitude, proporciona relações jurídicas (discussões judiciais) cada vez mais complexas e economicamente relevantes.
Esse cenário tem tornado crescente o anseio do legislador infraconstitucional regulamentar o direito à verba honorária de forma compatível com o objeto (valor) e deslinde (complexidade) da demanda. Muito pelo fato de que o labor legislativo deve primar pelos preceitos constitucionais de razoabilidade e proporcionalidade, não tão significativos em 1969.
A tal preocupação legislativa (de razoabilidade e proporcionalidade) no que toca à fixação de verba honorária foi notada, a priori, com a edição do CPC/7312, espírito que se aprimorou com o advento do CPC/15, ocasião em que, por bem, estendeu-seo critério adotado às demandas de êxito fazendário, de forma expressa/específica.
A propósito, no início dos trabalhos para edição do CPC/15 (Projeto de Lei do Senado nº 166/2010), propôs-se que: “nas causas em que for vencida a Fazenda Pública, os honorários serão fixados entre o mínimo de cinco por cento e o máximo de dez por cento sobre o valor da condenação, do proveito, do benefício ou da vantagem econômica obtidos”. (g.n.)
Diante desses termos, por meio da Emenda nº 158, do Senador Marconi Perillo, propôs-se afastar a regra que estabelece honorários de, no mínimo, 5% do valor da condenação, nas causas em que for vencida a Fazenda Pública. Segundo o proponente, “essa regra poderia suscitar questões inconvenientes, como aquela em que a causa é de pequena complexidade, mas os valores da condenação alcançam patamares astronômicos, fazendo com que os advogados recebam honorários vultosos, desproporcionais ao trabalho desempenhado.”
Ao apresentar Parecer, o Relator - Senador Valter Pereira13, considerou que referida proposta encontrava-se prejudicada e haveria de ser rejeitada, pois “o Substitutivo [da proposta de texto inicial do PLS 166] estabeleceu faixas de percentuais de honorários para processos em que figuram como parte a Fazenda Pública, que variam de acordo com a expressão econômica da causa.”
Melhor explicando, a partir de tal Substitutivo extirpou-se a possibilidade de “honorários vultosos, desproporcionais ao trabalho desempenhado”, ao introduzir-se critério de fixação de verba honorária escalonada, cujo percentual varia de acordo com a expressão econômica da causa e respectivo grau de zelo do profissional, trabalho desempenhado e tempo exigido para tanto. Trata-se justamente o critério ora vigente (citado art. 85, §3º, do CPC/15).
Questão cerne é que, pela precisão e complexidade em que foi elaborado o novo critério de fixação de verba honorária, fez-se constar no mencionado Parecer do Relator Senador Valter Pereira a razão de o Substitutivo prever sua aplicação indistinta às demandas fazendárias (e não somente àqueles em que vencida), alterando-se o texto inicial do PLS nº 166/10:
“O PLS nº 166, de 2010, na sua versão original, mantém a diferença de tratamento, tanto que, quando a Fazenda Pública for vencedora a regra é uma, mas quando for vencida, a regra é outra.
Para corrigir essa distorção, o Substitutivo alterou a redação original, para estabelecer regra única para quando a Fazenda Pública for parte, assegurando, portanto, o tratamento igualitário.” (g.n)
Muito bem. Os trechos reproduzidos acima representam apenas pequena parte do árduo e longo trabalho legislativo que originou o critério sobre fixação de verba honorária no CPC/15, critério que, pela complexidade e precisão em que trata o tema, a teor das lições de Maria Helena Diniz14, afasta a possibilidade de se sustentar a condição de norma especial do decreto-lei 1.025/69.
Considerar o decreto-lei 1.025/69 norma específica para tratar de fixação de verba honorária em processos de êxito fazendário (ex: Execuções Fiscais) mostra-se verdadeiro paradoxo aos atuais anseios legislativos e citados preceitos constitucionais de razoabilidade, proporcionalidade e isonomia, tornando inócuas as discussões e trabalhos sobre o tema, por ocasião da edição do CPC/15.
Soma-se a isso o fato de que a aplicação da norma jurídica deve se ater aos anseios do legislador que a editou, não somente pelo método dedutivo, mas por força do quanto previsto na já citada Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro - fonte para resolução de antinomias - que em seu art. 5º dispõe que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”
Por fim, mesmo que se ponha de lado todas as premissas acima, a ponto de se guardar ao decreto-lei 1.025/69 a condição de norma especial em matéria de verba honorária no êxito fazendário, ainda assim, a Teoria do Diálogo das Fontes15 induz à aplicação do CPC/15 em detrimento daquele longínquo normativo.
O STJ, em diferentes oportunidades, enfrentou termas sob o contexto de aplicação da referida Teoria do Diálogo das Fontes, inclusive em julgado sob o regime dos Recursos Representativos da Controvérsia.
Por ocasião do referido julgado “repetitivo”, a Corte reconheceu que, “consoante a Teoria do Diálogo das Fontes, as normas gerais mais benéficas supervenientes preferem à norma especial (concebida para conferir tratamento privilegiado a determinada categoria), a fim de preservar a coerência do sistema normativo”:
“RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. PROCESSO JUDICIAL TRIBUTÁRIO. (...) INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DAS LEIS. TEORIA DO DIÁLOGO DAS FONTES. APLICAÇÃO IMEDIATA DA LEI DE ÍNDOLE PROCESSUAL. (...)
10. Com efeito, consoante a Teoria do Diálogo das Fontes, as normas gerais mais benéficas supervenientes PREFEREM à norma especial (concebida para conferir tratamento privilegiado a determinada categoria), a fim de preservar a coerência do sistema normativo. (...)
Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008.
(REsp 1184765/PA, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 24/11/2010, DJe 03/12/2010) (g.n.)
Referido entendimento foi ratificado em diferentes momentos pelo STJ16.
Nota-se que, ainda que o intérprete se debruce sobre a discussão em apreço tomando o decreto-lei 1.025/69 como norma especial, pode-se sustentar a existência de preceitos doutrinários e jurisprudenciais que credenciam a aplicação do CPC/15, em detrimento daquele.
Em suma, de acordo com os aspectos normativos, doutrinários e jurisprudenciais apontados acima, conclui-se que a antinomia gerada em matéria de verba honorária em decorrência da edição do CPC/15 induz à preferência deste Diploma Processual frente ao disposto no decreto-lei 1.025/69, sob pena de se cercear a evolução legislativa que há de acompanhar a evolução das relações jurídicas. « Voltar