Doutrinas > Processo Civil - CPC 2015
Condenação por improbidade administrativa exige individualização das condutas e dosimetria das penas
Autores: Ticiano Figueiredo e Alberto MaltaPublicado no site em: 25 de agosto de 2016
Nos dois primeiros artigos desta série — "Agentes públicos: ímprobos até que se prove o contrário?" e "Improbidade Administrativa: o abismo entre o ‘mal administrar’ e a ‘desonestidade’" —, discutimos a inconstitucionalidade do atual entendimento jurisprudencial de presunção de dilapidação patrimonial em ações de Improbidade Administrativa e a recorrente ausência de demonstração do elemento subjetivo (dolo ou culpa grave) para o exercício das pretensões condenatórias. Nesse mesmo cenário de lesividade às garantias legais e constitucionais dos acusados, outro ponto merece grande destaque: a exacerbação das pretensões exercidas, destituídas dos indícios necessários e eivadas de vícios processuais, bem como a ausência de individualização das condutas e de devida dosimetria das sanções.
Com efeito, as pretensões de muitas das diversas ações de Improbidade Administrativa recentemente ajuizadas têm sido formuladas sem o nexo causal necessário, isto é, formulam-se pedidos exorbitantes, que extrapolam em muito os fatos narrados e carecem da individualização dos atos, notadamente no que decorre das grandes Operações, em que são vários os acusados por ação.
A partir disso, passa-se a cometer, também, equívocos processuais, como a inépcia da petição inicial, por desconexão lógica entre as premissas fáticas e as conclusões (art. 330, I e § 1º, I, do CPC/15), a litispendência, consubstanciada na repetição de causas de pedir e pedidos em diferentes ações, contra os mesmos acusados (art. 337, VI e §§ 1º e 3º, do CPC/15), e postulações processualmente ilegítimas (art. 17 do CPC/15).
Pois bem. O que ocorre é que são narrados fatos de forma genérica e superficial, incluídos vários agentes públicos no polo passivo e, ao fim, pleiteadas sanções desproporcionalmente cumulativas a todos eles, sem qualquer distinção — o que inclui pretensões de natureza cautelar que atingem a indisponibilidade automática de todo o patrimônio dos acusados, como relatado no primeiro artigo desta série.
Nesse cenário, é preciso relembrar do necessário iter de individualização dos atos de improbidade administrativa, rotineiramente esquecidos e que são bem delimitados por EMERSON GARCIA e ROGÉRIO PACHECO ALVES1:
(i) primeiro, há que se demonstrar, de forma geral, a incompatibilidade de cada conduta com os princípios regentes da atividade estatal, ou seja, a inobservância do princípio da juridicidade;
(ii) em seguida, deve-se comprovar o elemento subjetivo (dolo ou culpa grave) da conduta do agente, imprescindível para a caracterização da improbidade, como bem detalhado no segundo artigo desta série;
(iii) terceiro, deve-se verificar os efeitos dos atos perpetrados, para incursão nas hipóteses dos arts. 9º (enriquecimento ilícito), 10 (prejuízo ao erário) ou 11 (ofensa a princípios da Administração Pública) da Lei de Improbidade Administrativa (8.429/92);
(iv) em quarto lugar, é necessário observar as disposições gerais dos arts. 1º, 2º e 3º da lei 8.429/92, que preveem quem são as pessoas e os atos sujeitos ao regime da Improbidade Administrativa2, requisito este indispensável à adequação da via eleita para apenação dos acusados; e
(v) por fim, impõe-se a verificação dos fatos apurados à luz do princípio da proporcionalidade, notadamente para constatação da tipicidade das condutas. A esse respeito, os autores supracitados afirmam que “[e]m um primeiro plano, a sua utilização [Lei 8.429/92] haverá de assumir ares de excepcionalidade, evitando-se que seu emprego seja vulgarizado, terminando por legitimar uma ‘atipicidade generalizada’. Como parâmetros a serem seguidos, deve-se observar se é insignificante a lesão aos deveres do cargo ou à consecução dos fins visados e se a conduta apresentava compatibilidade com a realidade social do local em que foi praticada”.
Somente a partir desses critérios é que poderá haver procedência na pretensão a condenações pela Lei de Improbidade Administrativa, o que, infelizmente, não tem sido observado. E pior: também para a aplicação das sanções, esses requisitos são esquecidos, de modo que sua dosimetria ocorre, muitas vezes, de forma descriteriosa, nos patamares máximos3.
Ofende-se, assim, o parágrafo único do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa, segundo o qual "[n]a fixação das penas previstas nesta lei o juiz levará em conta a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente”.
Exatamente por essa comum desatenção ao iter de individualização da Improbidade Administrativa e à devida dosimetria das sanções, o colendo Superior Tribunal de Justiça firmou sua jurisprudência no sentido de que é necessária a análise da razoabilidade e da proporcionalidade em relação à gravidade do ato de improbidade e à cominação das penalidades, as quais não devem ser aplicadas indistintamente: faz-se imprescindível, portanto, a individualização das condutas, não se podendo ultrapassar em espécie ou quantidade o limite da culpabilidade do autor do fato. Do contrário, a inicial acusatória inverte de modo ilegítimo e inaceitável o ônus da prova.
Confira-se, a título ilustrativo, ementa de acórdão proferido em caso no qual se apurava a ocorrência de improbidade em atos de ex-Presidente e de ex-Diretor de Administração da Casa da Moeda, por hipotéticas irregularidades em contratos firmados sem licitação — inicialmente condenados a multa civil de cinco vezes o valor da remuneração que recebiam à época, perda da função pública, suspensão de direitos políticos e proibição de contratar com o Poder Público por três anos, afastou-se, na Corte Superior, a suspensão de direitos políticos e reduziu-se a multa para três vezes o valor das respectivas remunerações:
ADMINISTRATIVO. RECURSOS ESPECIAIS. AÇÃO CIVIL POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONTRATOS IRREGULARES. LICITAÇÃO. INEXIGIBILIDADE NÃO RECONHECIDA. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULAS 5 E 7/STJ. ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ART. 11 DA LEI 8.429/92. ELEMENTO SUBJETIVO. NECESSIDADE. COMPROVAÇÃO. APLICAÇÃO DAS PENALIDADES PREVISTAS NO ART. 12 DA LEI 8.429/92. PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE INOBSERVADOS. READEQUAÇÃO DAS SANÇÕES IMPOSTAS. PRECEDENTES DO STJ. RECURSOS ESPECIAIS PARCIALMENTE PROVIDOS.
1. No caso dos autos, o Ministério Público Federal ajuizou ação de improbidade administrativa contra o ex-Presidente e o ex-Diretor de Administração da Casa da Moeda, com fundamento no art. 11, I, da Lei 8.429/92, em face de supostas irregularidades em contratos firmados sem a realização de processo licitatório. Por ocasião da sentença, o magistrado em primeiro grau de jurisdição julgou procedente o pedido da referida ação para reconhecer a prática de ato de improbidade administrativa e condenar os requeridos, com base no art. 12, III, da Lei 8.429/92.
(...)
5. A aplicação das penalidades previstas no art. 12 da Lei 8.429/92 exige que o magistrado considere, no caso concreto, “a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente” (conforme previsão expressa contida no parágrafo único do referido artigo). Assim, é necessária a análise da razoabilidade e proporcionalidade em relação à gravidade do ato de improbidade e à cominação das penalidades, as quais não devem ser aplicadas, indistintamente, de maneira cumulativa.
6. Na hipótese examinada, os recorrentes foram condenados na sentença ao pagamento de multa civil “correspondente a cinco vezes o valor da remuneração recebida pelos Réus à época em que atuavam na Casa da Moeda do Brasil (CMB) no período da contratação irregular, devidamente atualizado até o efetivo pagamento, bem como decretar a perda da função pública que eventualmente exerçam na atualidade, a suspensão dos direitos políticos por três anos e a proibição dos Reús de contratarem com o Poder Público pelo prazo de três anos” (fls. 371/378), o que foi mantido integralmente pela Corte a quo. Assim, não obstante a prática de ato de improbidade administrativa pelos recorrentes, a imposição cumulativa de todas as sanções previstas na referida legislação não observou os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Tal consideração impõe a redução do valor da multa civil de cinco para três vezes o valor da remuneração, bem como autoriza o afastamento da sanção de suspensão dos direitos políticos dos recorrentes.
7. Provimento parcial dos recursos especiais, tão-somente para readequar as sanções impostas aos recorrentes.4 (Grifos daqui)
Como se percebe, o julgado parte da individualização e delimitação de condutas para uma proporcional dosimetria das sanções, ao encontro do que aqui se expõe. Trata-se de uma posição jurisprudencial que deve ser difundida e, sobretudo, estendida à atuação dos órgãos persecutórios.
É que, na cega tentativa de ver condenados os mais diversos agentes públicos em privações e valores enormes, ajuizam-se ações que, não cumprindo o iter de individualização, vão até mesmo além do excesso de pedidos, configurando-se atecnia processual, pelo que vale apresentar dois breves exemplos:
(i) é comum ver a formulação de pedidos idênticos de indenização por danos morais, contra os mesmos réus, em ações diversas, situação corriqueira em grandes Operações — o Ministério Público opta por ajuizar diversas ações que decorram de uma mesma investigação, desmembrando-as a partir de contratações específicas apuradas, mas, em todas elas, pleiteia indenização por danos morais de forma absolutamente idêntica, justificando-se tão somente na “existência” do suposto esquema ímprobo.
(ii) também quanto às indenizações por danos morais, estas são comumente pleiteadas de forma processualmente ilegítima, uma vez que o Ministério Público formula suas pretensões indenizatórias por danos supostamente causados a pessoas jurídicas de direito público que podem ajuizar ações próprias e, a propósito, têm suas procuradorias especializadas, violando-se o art. 17 do CPC/155.
O excesso de pedidos e os consequentes equívocos técnicos decorrem, talvez, da limitação da condenação a custas, despesas processuais e honorários de sucumbência aos casos em que resta demonstrada má-fé do autor da Ação de Improbidade Administrativa (aplicação extensiva do art. 17 da Lei da Ação Civil Pública), situação extremamente rara, razão por que se torna precipitada a atuação persecutória.
Com este artigo, portanto, chama-se atenção à necessária utilização da Lei de Improbidade Administrativa à luz da ordem constitucional e da sistemática processual sob ela constituída, para que se evite a sujeição dos agentes públicos a postulações desmedidas e tecnicamente equivocadas e à apenação descriteriosa.
Fonte: Migalhas « Voltar