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Doutrinas > Processo Civil - CPC 2015

Reflexões sobre a atipicidade das técnicas executivas e o artigo 139, IV, do CPC de 2015

Autores: Jorge Amaury Maia Nunes e Guilherme Pupe da Nóbrega
Publicado no site em: 12 de agosto de 2016 O artigo 139, IV, do Código de Processo Civil de 2015, na esteira do artigo 461, § 5º do Código anterior, consagrou a atipicidade dos atos executivos ao dispor que incumbe ao juiz “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”.

Instrumento importante a viabilizar a satisfação da obrigação exequenda e a homenagear o princípio do resultado na execução, a atipicidade dos atos executivos não cuida, como adiantado, de ideia propriamente nova, mas é instituto, de fato, trazido de forma bem mais evidente e elastecida pelo Código atual, alcançando, mesmo, a satisfação de obrigação de pagar quantia certa.

A inovação não passou despercebida pelos mais atentos e foi objeto de glosa pelo enunciado 48, editado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM):

48) O art. 139, IV, do CPC/2015 traduz um poder geral de efetivação, permitindo a aplicação de medidas atípicas para garantir o cumprimento de qualquer ordem judicial, inclusive no âmbito do cumprimento de sentença e no processo de execução baseado em títulos extrajudiciais.1

Também o Fórum Permanente de Processualistas Civis se posicionou a respeito, cuidando da questão em seu enunciado de número 12:

12. (arts. 139, IV, 523, 536 e 771) A aplicação das medidas atípicas sub-rogatórias e coercitivas é cabível em qualquer obrigação no cumprimento de sentença ou execução de título executivo extrajudicial. Essas medidas, contudo, serão aplicadas de forma subsidiária às medidas tipificadas, com observação do contraditório, ainda que diferido, e por meio de decisão à luz do art. 489, § 1º, I e II. (Grupo: Execução)

Os estudiosos do Direito Processual Civil, nada obstante, foram além daquelas incursões preliminares, chamando nossa atenção posicionamentos recentemente externados2 no sentido de se buscar mais bem dimensionar o âmbito de vigência material do artigo 139, IV.

Nessa senda, os mais arrojados passaram a suscitar a possibilidade de o mencionado artigo 139, IV, fundamentar a adoção de técnicas de execução indireta consubstanciadas na apreensão do passaporte e/ou de carteira nacional de habilitação do executado, na sua proibição de participar de concurso público ou de licitações públicas, no bloqueio de cartões de crédito, na proibição de a pessoa jurídica contratar novos funcionários, entre outras possibilidades.3

Não podemos deixar de registrar que todas essas ideias, nascidas sobre o signo da efetividade, seduzem na medida em que visam a propiciar a satisfação do crédito exequendo. Isso porque, como sabido, e nos dizeres de Márcio Thomaz Bastos na exposição de motivos da proposição que culminaria na lei 11.232/05, que instituiu o rito do cumprimento de sentença, o processo de execução desde há muito carrega consigo a pecha de “’calcanhar de Aquiles’ do processo”, mercê da dificuldade de se “impor no mundo dos fatos os preceitos abstratamente formulados no mundo do direito”.4 Sem embargo, algumas daquelas propostas inspiram reflexão.

Vem de longe a evolução no sentido de fazer a responsabilidade por uma obrigação migrar da pessoa do devedor para seu patrimônio. Merecem registro específico, como marcos históricos remotos, a Lex Poetelia Papiria, de 326 a.C., que aboliu o nexum e possibilidade de escravidão do devedor como garantia da obrigação5, e a pignoris capio, ou “ação por tomada de penhor”6, que instituiu a possibilidade de o credor tomar parcela dos bens do devedor como forma de assegurar o adimplemento da dívida. Aqueles institutos culminariam, século depois, no artigo 789 do CPC de 2015, a consagrar que o devedor responda pela satisfação da obrigação com seus bens presentes e futuros, observadas as restrições impostas pelas impenhorabilidades legais.

Como já dissemos nesta coluna, é bem verdade que a responsabilidade patrimonial é excepcionada, em nosso ordenamento, pela prisão civil, resquício da responsabilidade pessoal romana. Há, contudo, uma justificativa para isso.

É que, a par de a prisão civil encontrar previsão constitucional no inciso LXVII do artigo 5º, o raciocínio é o de que o direito do alimentante à liberdade de locomoção cede diante dos direitos à vida e à dignidade, titularizados pelo alimentando e resguardados pelos alimentos. Foi esse mesmo raciocínio, aliás, que justificou, no passado, a edição da súmula 309 pelo STJ, agora positivada pelo artigo 528, § 7º, que limita a modalidade coercitiva às três últimas prestações vencidas e às prestações vincendas. A ideia é que, tendo o alimentando subsistido a despeito do não-pagamento de prestações mais antigas, essas verbas teriam perdido o caráter alimentar, que, na equação antes apresentada, justificaria a prisão civil do alimentante. Daí por que aqueles valores antigos remanescem exigíveis, mas somente pela via da expropriação.

Esse registro é relevante porque, em nossa opinião, a adoção de técnica de execução indireta para incursão radical na esfera de direitos do executado — notadamente direitos fundamentais —, quando carente de respaldo constitucional, não merece acolhimento, sob risco de se atentar contra o devido processo legal (artigo 5º, LIV, da Constituição).

Pretendendo ainda maior clareza, em nossa opinião, direitos fundamentais hão de ceder em ponderação somente quando houver, do lado oposto, outro(s) direito(s) fundamental(is), preservando-se, sempre, o núcleo essencial do direito fundamental relativizado. Não é o que se vislumbra nas propostas antes referidas.

De nossa parte, entendemos que a liberdade de locomoção, inserta no inciso XV do artigo 5º, que abrange o direito de deixar o território nacional, sofre embaraço indevido pela apreensão de passaporte ou pela suspensão da carteira nacional de habilitação.

Não se olvida que o STJ possui jurisprudência pelo descabimento de habeas corpus contra decisão que suspende direito de dirigir7, aplicando analogicamente a súmula 693/STF8. Não deve ser desconsiderado, todavia, que o entendimento consolidado se dá no sentido de inadequação da via eleita, à falta de constrangimento imediato ao direito de locomoção, não pela inexistência de violação a direito fundamental.

Dito de outro modo, segundo o STJ, não é que a suspensão do direito de dirigir não atente contra o direito à livre locomoção, somente não seria o habeas corpus o instrumento cabível para enfrentamento da virtual ilegalidade.

No que toca ao concurso público, o artigo 37, I, da Constituição, assegura o livre acesso aos cargos públicos àqueles que preencham os requisitos estabelecidos em lei. Cuida-se, com se nota, mais que uma imposição ao Estado, de norma que instrumentaliza a isonomia, a fazer com que alguns doutrinadores o situem, mesmo, no rol dos direitos fundamentais: “O direito fundamental de concorrer, em igualdade de condições, aos cargos efetivos e empregos públicos, é decorrente do regime republicano-democrático e do princípio da igualdade.”9.

O amplo acesso aos cargos públicos, portanto, é regra a somente encontrar flexibilização por força da lei e da razoabilidade, como reforçam as súmulas 1410 e 68311 e a súmula vinculante 4412, todas editadas pelo STF, motivo por que a interpretação extensiva de dispositivo infraconstitucional, que não traz em seu bojo limitação expressa no sentido do obstar aquele acesso, não tem o condão, em primeira análise, de lhe fazer frente.
Finalmente, no que toca à licitação, releva anotar que os artigos 37, XXI, 173, § 3º, III, e 175, todos da Constituição, submetem a regência do tema a reserva legal, sendo, assim, refratários a interpretação extensiva que insere em norma — no caso, o artigo 139, IV — restrição à participação em licitação não prevista expressamente em lei. Aliás, e ao contrário, a legislação infraconstitucional que regula expressamente o tema segue caminho oposto, no sentido de vedar restrições desarrazoadas que não guardem relação com o objeto do contrato. Quanto ao ponto, confira-se o artigo 3º, § 1º, I, da lei 8.663/93:

É vedado aos agentes públicos admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o objeto do contrato.

De mais a mais, rememore-se que o intuito da licitação é a seleção da proposta mais vantajosa em resguardo do interesse público. Ora, não se pode descartar, de pronto, a possibilidade de que a pessoa jurídica executada — passível, em tese, de exclusão do certame — seja aquela a apresentar a melhor proposta, raciocínio que redunda na conclusão de que a supremacia do interesse público não poderia ceder a um direito creditório do exequente. Dito de outro: entre a possibilidade de a pessoa jurídica executada ser aquela a melhor atender ao interesse público e a busca por satisfação de obrigação líquida, certa e exigível de que é credor o exequente, deve-se preferir aquela em detrimento desta.

Caminhando para nossa conclusão, um último ponto deve ser trazido à reflexão que propomos como forma de robustecer o arrazoado acima.

É que não é inédita a tentativa de se limitar direitos como forma coercitiva de se buscar a satisfação de obrigação de pagar quantia certa. Infensa à possibilidade, a jurisprudência consagrou entendimento relativizando a autoexecutoriedade no exercício do poder de polícia para reconhecer como ilegal a imposição do pagamento como condição para prática de ato administrativo, sendo essa a ratio presente na leitura combinada das súmulas 12713 e 31214/STJ e na súmula vinculante 21 do STF.15

Em suma, se a atipicidade das técnicas executivas mira o resultado, há limitação, decerto, pela menor onerosidade, sendo difícil admitirmos que a interpretação extensiva de dispositivo constitucional possa fazer ceder, em alguma medida, direitos de estatura constitucional, o que não esvazia, em absoluto, o artigo 139, IV, que passa a admitir, por exemplo, e em tese, o preceito cominatório em execução de obrigação de pagar quantia certa.16

À luz da exposição feita acima, e em análise primeva, sustentamos que o artigo 139, IV, do CPC de 2015, está a merecer declaração de inconstitucionalidade, sem redução de texto, para o fim de rechaçar a apreensão de passaporte, a suspensão do direito de dirigir e a vedação à participação em concurso ou em licitação públicos como medidas passíveis de serem adotadas pelo juiz, sob pena de vulneração aos artigos 1º, IV, 5º, XV e LIV, 37, I, 173, § 3º, III, e 175, todos da Constituição. Ainda que seja essa uma opinião ainda não totalmente amadurecida, ela já presta, de pronto, a oferecer contraponto para estimular o sempre bem-vindo debate. « Voltar