Doutrinas > Processo Penal
Todo privilégio deve ser exceção em uma República democrática
Autor: Marcelo FigueiredoPublicado no site em: 17 de abril de 2016
Inicialmente faz-se necessário recordar algumas noções. A prerrogativa de foro ou a prerrogativa de função sempre foi estabelecida ao longo dos diversos ordenamentos jurídicos em virtude do cargo ou da função exercida. Ela ou ele visavam proteger a função e não a pessoa nela investida.
O foro por prerrogativa de função teve suas justificativas em toda parte em que criado. Na origem ele era uma garantia- sobretudo do legislador para que somente fossem julgados nos crimes de responsabilidade por um foro especial.
De um modo geral, nenhum governante em uma democracia, do mais elevado cargo ao mais simples na hierarquia administrativa deveria ser imune a persecução penal.
Praticado um crime comum, digamos um homicídio, seja o Presidente da República seja um servidor civil, ambos deveriam ser julgados pelo mesmo juízo. Em meu entendimento pouco importaria se antes, durante ou depois do mandato.
No direito norte-americano modelo por excelência de Presidencialismo clássico, podemos recordar o precedente United States v. Nixon (418 U.S.683 (1974). Neste caso considerou-se que o Presidente pode ser processado em uma corte federal (that the President may be sued in a federal court).
O caso envolvia a alegação de crime comum e não de responsabilidade, ou se quisermos, o caso discutia a necessidade da produção de prova em uma julgamento de natureza penal.
Já em Clinton v Jones 520 U.S. 681 (1997) determinou-se que a imunidade presidencial não alcança ações por danos ocorridos antes do Presidente assumir o cargo. Com mais e maior razão se já deixou o cargo, quando se torna um cidadão comum.
A Inglaterra, país onde os principais institutos do Direito Constitucional nasceram, inclusive a imunidade, não há foro privilegiado. A França, berço das liberdades e da declaração universal dos direitos humanos apenas prevê foro por prerrogativa de função para o presidente, o primeiro-ministro e os ministros de Estado.
Lembro-me de um texto eloquente de minhas colegas Anais Dechambre, Marie -Odile Peyroux-Sissoko e Cécile Regourd cujo título é auto-explicativo: Parlamentares: Intocáveis?
Nele, as autoras dissecam as incongruências contemporâneas e as ambiguidades da imunidade parlamentar. Recordam as origens do instituto – para a defesa das opiniões e discursos que com o tempo, desvirtuou-se completamente.
A França foi obrigada a reduzir o campo das imunidades para evitar a irresponsabilidade, mal maior em uma República. Os representantes do povo devem satisfação ao povo que o elegeu.
Imunidade não deve representar a impunidade. (Transparence et Vie Publique, Cahier Constitutionnels de Paris, Dalloz, 2015, obra coordenada por Bertrand Mathieu e Michel Verpeaux).
Na Alemanha, o foro privilegiado alcança apenas para o Presidente e o primeiro-ministro. Mas voltemos à realidade brasileira.
Dir-se-á que o foro por prerrogativa de função é constitucional e compatível com o princípio do juiz natural previsto no artigo 5º , LIII da CF. O fato de existir uma previsão constitucional não significa que ela seja justa, adequada ou que não ser revista ou reformada.
Vicente Greco Filho equipara o foro privilegiado aos tribunais de exceção (Tutela Constitucional das Liberdades, SP, Saraiva, 1989 p. 108). Para nós o que deveria ser exceção justificada e excepcional tornou-se regra para muitas pessoas o que contribuiu para desvirtuar o instituto desde suas raízes.
Todo e qualquer privilégio em uma República deve ser instituído como exceção. Seguir rumo contrário certamente levará a impunidade dos poderosos e daqueles justa ou injustamente protegidos pela regra excepcional.
A recente história brasileira bem demonstrou esse quadro. Quantos empresários foram presos e processados rapidamente enquanto políticos ocupantes de cargos e mandatos também coautores dos mesmos crimes receberam idêntico tratamento?
Dir-se-á que o problema está na concentração de foro privilegiado no STF ou do número elevado de autoridades que lá respondem por atos ímprobos ou criminais.
Esse é de fato um problema, mas não é o único. Todo e qualquer tribunal de segundo grau de instância especial não é vocacionado como todos sabemos para proceder a instrução processual, coletar provas e envolver-se em matéria de fato.
Mas o problema não é apenas de ordem prática, mas também como vimos de natureza estrutural. Não se justifica ampliar em demasia garantias ou privilégios que deveriam ser de algumas pessoas apenas.
Recorde-se do exemplo da lei de improbidade. Quando se sustentou no passado sua não incidência aos agentes políticos, (sempre eles), desencadeou-se uma grande e abominável impunidade. Um bom exemplo de deturpação do foro “privilegiado” e criação de nichos de irresponsabilidade.
Aliás, no Brasil ultimamente temos visto um profundo divórcio entre a vontade popular, o interesse público e social e a conduta dos representantes do povo.
A democracia representativa brasileira vem testando a paciência de seu povo. Não é sem razão que os movimentos para abrandá-la com mecanismos da democracia semidireta aumentam dia a dia (plebiscito, referendo, iniciativa popular, cassação de mandatos do legislativo e do executivo).
A maioria dos países latino-americanos já dispõem de tais mecanismos. Alguns já utilizados com sabedoria, outros com demagogia. Aliás deveríamos voltar mais os olhos para os nossos irmãos latino-americanos e seu Direito.
Os colombianos por exemplo depois de passarem por décadas muito difíceis de violência, poder paramilitar, e problemas com os políticos instituíram interessantes mecanismos de democracia semidireta como os referendos, as consultas populares , as “revocatórias de mandatos” e ainda a perda de “silla” ou “silla vacía”, mecanismo que o parlamentar e o partido perdem, por ação do Judiciário, a vaga conquistada pelo parlamentar e pelo partido que restar acusado e condenado definitivamente por corrupção.
O instituto da “silla vacía” foi adotado na Colômbia pelo Ato Legislativo 1, de 2009 como uma medida para sancionar aos partidos políticos que tinham vínculos com grupos à margem da lei e com o narcotráfico.
Por seu intermédio, criou-se a figura da responsabilidade política dos partidos e de seus dirigentes para avaliar pessoas com conexões com organizações ou empresas que se dedicam ao crime - é dizer para combater a corrupção em um sentido mais amplo possível.
Ao ser aplicado naquele país, por exemplo, o Congresso eleito para o período de 2010-2014, resultou na perda de cinco cadeiras de parlamentares por associação com a corrupção. O partido político perdeu as vagas que dispunha no Parlamento.
No Senado, do mesmo modo, foram retiradas cinco vagas de senadores por vínculos com a corrupção. Por esse instrumento o partido fica sem as respectivas vagas perdidas enquanto perdura o mandato do parlamentar ou senador “cassado” pelo Poder Judiciário.
Anteriormente a esse instituto os parlamentares ou senadores eram substituídos por seus respectivos suplentes. Essa foi a criativa resposta colombiana para quem utiliza do mandato político para beneficiar empresários ou empresas que mantém contratos com o Poder Público a partir de arranjos com o poder político.
Ademais, também naquele país, encontramos a chamada “perdida de investidura”. O parlamentar perderá o mandato por diversas razões. Dentre elas destacam-se, pela perda de investidura decretada pelo Conselho de Estado mediante um procedimento que a lei estabelece, se ocorrer:
1) a violação do regime sancionatório a que está sujeito o parlamentar;
2) por violação ao regime de suas incompatibilidades ao exercício do cargo;
3) por conflito de interesses;
4) por indevida destinação de dinheiros públicos;
5) por tráfico de influências devidamente comprovado;
6) por ausência a determinado número de sessões;
7) por violação ao teto de gastos na campanha política.
É dizer, tivéssemos um aperfeiçoamento do regime jurídico ético e disciplinar do poder político, não necessitaríamos de um regime distorcido do foro privilegiado.
O poder político, em todo o mundo precisa pensar, defender e implementar medidas que efetivamente sejam do interesse do País e não de seus interesses pessoais e particulares.
O foro privilegiado ou se quisermos, a sua ampliação desmedida e irresponsável reflete esse estado de coisas, essa displicência irresponsável com a cidadania.
Reconhecemos que a matéria é complexa, extensa e com nuances. Novamente, voltando ao caso do foro privilegiado.
Fixemo-nos nos mais elevados cargos da República e em nossa realidade. Estima-se que no Brasil haja entre 22 e 26 mil pessoas com foro privilegiado. O que deveria ser uma exceção justificada para somente algumas pessoas na cúpula decisória da República, virou regra desvirtuada.
Hoje, em toda a federação brasileira existem pessoas com foro privilegiado. Do presidente ao diretor de uma estatal, a um vereador de um longínquo município, todos têm ou podem ter um foro privilegiado.
Evidentemente que essa progressiva blindagem não responde a qualquer racionalidade jurídica ou lógica. Trata-se de um evidente privilégio (mais um) injustificado e desigual. Em um estudo recente em que foram analisadas vinte democracias sólidas e o Brasil, nosso país ganhou o primeiro lugar com o maior número de autoridades com foro privilegiado.
A meu juízo nada justifica também manter o foro privilegiado para autoridades mesmo após o fim do mandato ou da função ocupada. Correto estava o Supremo Tribunal Federal quando em 1999 derrubou a Súmula 394.
Nessa matéria tenho uma visão muito contida. Foro privilegiado somente para as altas autoridades da República: presidente, ministros de Estado, ministros do STF e procurador-geral da República. Ninguém mais.
Dir-se-á que haverá persecuções políticas e abusos de magistrados no primeiro grau. Pode-se pensar, conforme o caso, que o recebimento da denúncia (somente), em se tratando de crime de responsabilidade ou de crime especial ocorra, conforme o caso em segundo grau. Nada além disso. « Voltar