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Execução provisória da pena logo após a decisão de 2º grau: irretroatividade da mudança jurisprudencial do STF desfavorável ao réu
Autores: René Ariel Dotti e Luiz Flávio GomesPublicado no site em: 09 de agosto de 2016
(1) O STF, em 17/2/16, julgando o HC 126.292 (SP), sob a relatoria do ministro Teori Zavascki, ao negara ordem decidiu que “a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência firmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal”. Acompanharam o relator os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Divergiram os ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski.
(2) A nova orientação rompeu com o precedente de 5/2/09 (HC 84.078/MG), relator o ministro Eros Grau, que declarava ofensiva ao princípio constitucional da presunção de não culpabilidade a execução provisória da pena de prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. O direito vigente antes de 2016, como se vê, era nitidamente mais favorável ao ius libertatis. Consequentemente, o novo direito (a nova norma jurídica fixada pela Corte Suprema) é desfavorável aos réus. A retroatividade da nova norma (desfavorável) viola flagrantemente o disposto no art. 5º, inc. XL, da CF, que diz: “a lei penal [a norma penal, o direito penal] não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
(3) Em substancioso parecer, “Mudança da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária. Segurança Jurídica e modulação dos efeitos temporais das decisões judiciais”, o professor Luís Roberto Barroso leciona: “Se é o Poder Judiciário, e sobretudo o Supremo Tribunal Federal, no sistema brasileiro, o órgão que define em última análise qual é o direito, a modificação do entendimento consolidado da Corte sobre determinada matéria modifica o direito vigente e, sob a perspectiva do cidadão, isso equivale em todos os elementos relevantes, à alteração do próprio texto legislado. Ora, a fim de proteger o indivíduo, a Constituição ocupa-se de impor limites à inovação legislativa. Pelas mesmas razões, e na linha do que já se destacou acima, uma Suprema Corte que decide modificar sua jurisprudência consolidada deve preocupar-se com cuidados semelhantes”1.
(4) E, mais incisivamente:
“A aplicação do que se acaba de expor ao caso é de singela verificação. A eventual mudança de interpretação por parte do STF na hipótese produz os mesmos efeitos da edição de um novo ato legislativo. Mesmo porque, como já se sublinhou, a norma não se confunde com o texto legislado, sendo na verdade o produto final da interpretação. Nesse passo, se a prática anterior dos contribuintes era expressamente reconhecida pelo STF e pelos demais tribunais como o comportamento exigível, este era o direito ou a norma em vigor. A nova orientação da Corte, caso venha a ser efetivamente formalizada, importará em norma nova e resultará na majoração do tributo a ser pago, podendo ser aplicada apenas a partir do momento de sua edição, e não retroativamente”.2
(5) É evidente que essa lição, da irretroatividade da lex gravior em matéria tributária, garantida pela Constituição (art. 150, III, a), é aplicável ao sistema positivo penal em face do princípio da analogia legis. A mudança de jurisprudência, cabe enfatizar, significa mudança da norma vigente (do direito vigente). Antes do neoconstitucionalismo (pós 2ª Guerra Mundial) todo o direito estava centrado fundamentalmente na lei. A partir dele a lei é apenas o ponto de partida para a construção do direito (da norma), que é uma atividade complexa do legislador e do juiz. A constituição (e suas regras), consoante a doutrina da “Constituição vivente” (living constitution), implica reconhecer na jurisprudência constitucional o que ela vai sendo no decorrer do tempo e das mudanças de gerações” (GOMES, L. F. e VIGO, Rodolfo Luis, Do Estado de Direito Constitucional e Transnacional, São Paulo: Premier, 2008, p. 169-170).
(6) Não é discrepante o entendimento de Rogério Greco (Código Penal Comentado: Rio de Janeiro, Impetus, 2011, p. 14-15): “Se houver modificação [na jurisprudência do STF] para pior, a situação anteriormente definida com base na posição mais benéfica, agora modificada, deverá ser mantida. Por outro lado, se houver modificação benéfica, isto é, quando o Tribunal se posicionava de determinada forma e, agora, afastando-se do pensamento anterior, o modifica em benefício do agente, tal pensamento deverá retroagir, aplicando-se aos casos anteriormente julgados”. No mesmo sentido: GOMES, L.F., BIANCHINI, A. e DAHER, F.: Curso de Direito penal, Salvador: Juspodivm, 2016, p. 158-159).
(7) Um dos fundamentos basilares da nova exegese do STF, exposta no minucioso e brilhante voto do relator Teori Zavascki, consiste no argumento de que “tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordinária, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado”(item 5, trecho final, grifos nossos). Mas forçoso é reconhecer que a condenação pode ser anulada por violação do princípio do devido processo legal, por um ou outro dos tribunais superiores concedendo habeas corpus ou provendo o apelo federal.
(8) Para a surpreendente mudança, a Corte Maior rendeu-se a duas coordenadas:
(1ª) Ao mito de que a demora nos julgamentos nos tribunais superiores deve ser debitadaà defesa dos condenados pelo abuso de recursos;
(2ª) Aos fortes e contínuos ventos soprados pela mídia sensacionalista de modo a enfunar as velas da embarcação rumo ao porto seguro da impunidade.
(9) Apesar da substância e lucidez dos votos vencidos, nomeadamente o longo e erudito pronunciamento do ministro Celso de Mello, o precedente afronta, além do princípio da presunção de inocência, como cláusula pétrea insuscetível de deliberação por proposta de emenda porque declara, ao mesmo tempo, um direito e uma garantia individual (CF, art. 60, § 4º, IV). E, com uma simples “penada” afrontou:
(a) os princípios de independência e harmonia entre os poderes do Estado, essenciais em um Estado Democrático de Direito;
(b) o princípio legal da presunção de inocência (CPP, art. 283);
(c) o direito de iniciar o pagamento da multa somente após 10 (dez) dias do trânsito em julgado da sentença (CP, art. 50);
(d) os comandos dos arts. 105, 147, 160 e 164 da lei de Execução Penal (7.210/84), que regulam a execução das penas privativas de liberdade, restritivas de direitos, do sursis e da multa.
(10) Há um número imenso de acusados que estão sofrendo, por antecipação, o rigor das prisões brasileiras por ordem e responsabilidade da Magna Corte e de tribunais federais e estaduais. É o paradoxo de executar a condenação enquanto o réu é presumido inocente. No fundo, porém, a coação que sofrem constitui clara violação do princípio de irretroatividade da lei penal mais grave, proibido expressamente pela Constituição (art. 5º., XL). Com efeito, não colhe o possível argumento fundado no art. 2º do CPP, de que “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, (...)”, simplesmente porque o aresto do HC 126.292 (SP), tem um conteúdo misto, envolvendo não só matéria processual como também penal. Realmente, a norma do art. 5º, LVII, da lei fundamental trata de cláusula constitucional de evidente conteúdo material., como acentua Paulo César Busato, em seus Fundamentos do Direito Penal brasileiro, 3. ed., Curitiba, 2012, p. 275-277)
(11) A norma de conteúdo misto foi reconhecida no julgamento do TRF da 1ª região, 2ª turma, na AP - AP 1998.01.00.051300-9-MG- Rel. Des. Vera Carla Cruz, 26.02.2002, RT 804/687, verbis: “Prescrição. Admissibilidade. Indiscutível essência de direito material, uma vez que extingue a pretensão punitiva do Estado. Nova redação conferida pela Lei 9.271/96 ao art. 366 do CPP cominou ao mesmo tempo em consagrar norma de direito processual, determinando suspensão do curso do processo, e, ainda, na regra de direito material, suspendendo o fluxo da prescrição. Inaplicabilidade. Norma mais gravosa ao acusado, conduta anterior à referida lei. Aplicação ao princípio constitucional da irretroatividade da norma menos benéfica”.
(12) É evidente que o acórdão da mudança, pela maioria dos membros do STF, interpretou uma norma constitucional-penal (“ninguém será considerado culpado atéo trânsito em julgado da sentença penal condenatória)” para negar-lhe vigência na hipótese da condenação de segundo grau. A maior demonstração de que o mencionado aresto tem conteúdo misto se demonstra quando a execução antecipada da pena de prisão implica, necessariamente, na execução pena de multa quando cumulativa, situação que nega vigência ao art. 50 do Código Penal: “A multa deve ser paga dentro de 10 (dez) dias depois de transitada em julgado a sentença. (...)”.
(13) Ao deferir liminar no HC 135.752 (julho/16), o presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, não só impediu a execução imediata de uma decisão de segundo grau (por ofensa ao princípio da presunção de inocência), como sublinhou que o próprio STF já fez “sinalização de possível mudança de entendimento jurisprudencial”. Mais: a decisão de fevereiro/16 não possui qualquer eficácia vinculante. De qualquer modo, mesmo que o STF, de forma vinculante, mantenha seu entendimento sobre a execução provisória da pena após a decisão de 2º grau, mesmo assim, deveria preservar a força constitucional do princípio da irretroatividade da nova norma (do novo direito) prejudicial ou desfavorável ao réu. Nenhuma lei, leia-se, nenhuma norma, nenhum direito penal novo (ainda que fruto da jurisprudência da Corte Máxima) pode retroagir, salvo para beneficiar o réu (CF, art. 5º, XL).
Fonte: Migalhas « Voltar