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A arbitragem e a Teoria Geral do Contrato – I

Autor: Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Data de publicação: 25 de novembro Introdução

Todos que conhecem o instituto da arbitragem sabem que sua atuação se dá exclusivamente no plano dos direitos patrimoniais disponíveis, mesmo que, conforme modificação legal recente, ela possa ser aplicada no setor público, com as ressalvas previstas.

Ora, a disponibilidade de direitos patrimoniais somente apresenta um único caminho, o do contrato. Este pode ser do tipo fechado (sinalagmático) ou aberto (plurilateral ou associativo). O exemplo mais frisante do primeiro é a compra e venda e do segundo as sociedades. No presente breve analisaremos esses tipos contratuais em uma série de artigos, tendo em vista alguns aspectos de sua teoria geral, relevantes e oportunos para a arbitragem, que a eles se aplicam indistintamente, observando que ultimamente se nota sensível desconhecimento a seu respeito, tendo sido deixado de lados os estudos pertinentes. Para que possa se ter uma ideia a respeito, as obras nacionais mais conhecidas de muitas gerações sobre a teoria geral do contrato foram as de autoria de Orlando Gomes e de Darcy Bessone da década de sessenta do século passado, hoje consideradas clássicas1. Nota-se mais recentemente um excelente estudo de Teresa Negreiros de 2006, Teoria do Contrato: Novos Paradigmas, ed. Renovar, 2006 e ficamos somente nisto. Foi esta a razão que nos fez arriscar uma abordagem do tema, objeto do vol. 5 da nossa coleção de Direito Comercial, então publicada em 2015. O lapso de tempo entre aquelas primeiras obras e a deste autor foi, portanto, de mais de sessenta anos, tendo se observado no tempo que passou o advento do CC/02 e a revogação do Código Comercial de 1850, entre tantas outras modificações e novidades legislativas.

1. Características essenciais e oportunas dos contratos fechados no tocante a arbitragem: a função social, a probidade e a boa-fé.

Nos contratos fechados, também conhecidos como sinalagmáticos, as duas únicas partes se encontram em posições antagônicas, credoras e devedoras recíprocas umas das outras. Não se confunda parte com pessoa. As partes podem ser formadas por mais de uma pessoa, mas existem apenas dois centros de interesse econômico e de imputação jurídica em tais contratos.

Como todo e qualquer contrato, esses também se formam pela manifestação livre da vontade das partes, observando-se que qualquer contrato nominado já apresenta a sua licitude implícita, cabendo aos participantes de contratos inominados demonstrá-la, indicando que não afetam a ordem jurídica por meio de alguma ilicitude eventualmente presente. Na verdade, então, não se trataria de contrato, ainda que preenchidos os demais elementos, em razão da própria ilicitude.

Tanto nos nominados como inominados (exceto algumas exceções bem específicas), as partes tanto são livres para celebrá-los, como para regulá-los ou para ceder seus direitos/obrigações a terceiros. Neles estão presentes de maneira geral os chamados direitos patrimoniais disponíveis. Lembremo-nos, a propósito, que o conceito de contrato se traduz como um acordo de vontades, celebrado entre duas ou mais partes, com o fim de constituir, regular ou extinguir uma relação jurídica de natureza patrimonial (na esteira da definição do art. 1.321 do CC Italiano de 1942)

Por sua vez, aceitas por alguns autores na qualidade de cláusulas gerais, duas disposições cuja utilização tem sido bastante discutidas entre nós são encontradas nos artigos 421 e 422 do CC/02: a função social do contrato, a probidade e a boa-fé (objetiva), as quais reproduzimos em seguida para melhor comentá-as nessa curta visão da teoria geral desse instituto:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Para que o leitor tenha um conhecimento mais aprofundado dessas questões, o remetemos com mais calma precisamente para o volume 5 da nossa Coleção de Direito Comercial, a par de outros textos ali referidos e de muitos outros encontrados nos periódicos jurídicos e em obras de doutrina.

A primeira observação diz respeito à restrição que nos parece inconstitucional, referente ao reconhecimento da presença da liberdade de contratar tão somente nos casos em que os contratos (ou algum deles em particular) preencham o requisito da função social correspondente.

Do ponto de vista econômico ninguém nega que cada contrato realiza um fim determinado, capaz de satisfazer determinadas necessidades das partes. Na compra e venda o vendedor deseja o preço de um bem do qual pretende desfazer-se. O comprador, do seu lado, pretende adquiri-lo para um uso qualquer, pagando o respectivo preço. Essa é a função econômica desse contrato e na medida em que, agasalhada pelo direito e considerado em sua somatória quanto aos infinitos contratos da mesma espécie que são concluídos a cada momento em todo o país, está preenchida a sua função social. E ponto.

No caso acima em qualquer contrato de maneira geral, não existe norma ordinária ou constitucional que obrigue no campo do Direito Comercial que seja atingida qualquer função social como, por exemplo, a prática de um preço mais favorecido ou um prazo mais longo para a parte que, no caso concreto, for considerada hipossuficiente. Lembre-se que o Direito Comercial tutela operações celebradas entre particulares, no exercício da livre expressão de sua vontade.

Nem sequer o Código do Consumidor, que a este tutela, pode ser visto como um conjunto de normas voltado para proteger o consumidor, lado mais fraco da relação contratual, sob o pretexto do atendimento a uma função social. Existe, isto sim, nos termos do art. 1º daquele um interesse social, que é muito diferente de função social. O que está em vista para efeito de uma proteção especial (art. 4º, I), em termos de política nacional das relações de consumo, é a reconhecida vulnerabilidade do consumidor diante da outra parte. Entre dois empresários que celebram contratos no exercício de sua atividade tal vulnerabilidade não se presume: ela pode estar presente em alguma circunstância concreta, a ser identificada individualmente pelo juiz ou pelo árbitro devendo, então dar-se lugar aos remédios jurídicos cabíveis.

Quando, portanto, se cuida de dois empresários celebrando um determinado contrato, não se pode estender a um deles (aquele tido como parte mais fraca na relação jurídica), mesmo que por analogia, uma disposição protetiva do Código do Consumidor, em flagrante violação dos seus limites legais. Uma prática como essa representaria o completo desvirtuamento do Direito Comercial, à qual não estão imunes os tribunais a exemplo de decisão recente do STJ que considerou o contrato de franquia como formado por adesão, para o fim de se proteger o sempre coitado que é o franqueado .

A segunda observação, respeitante ao teor do art. 422 do CC é típico resultado de uma prática jurídica tão cara entre nós, denominada chover no molhado, largamente copiada pelo infeliz projeto de código comercial que nos assombra todas as noites. Desde que o contrato é contrato, lá em priscas eras, que vão além do Direito Romano, as partes são obrigadas a o celebrarem imbuídas de boa-fé e de honestidade. Ainda mais quando se trata de comerciantes no exercício de sua atividade. Esse artigo é tão inútil em sua expressão escrita do que uma nota de três reais (e tão barato quanto).

Vamos de imediato a uma antiquíssima fonte, tão mencionada no mundo do direito, o famoso Código de Hamurabi em seu art. 123: “Se alguém deposita o trigo na casa de outro, deverá dar-lhe, como aluguel do armazém, cinco ka de trigo por cada gur de trigo ao ano”. Será que não já estavam presentes nessa norma as obrigações de probidade e de boa-fé?

O velho Moisés escreveu no capítulo 19, versículo 13 do Livro de Levítico, que o empregador não poderia reter o salário do seu empregado (jornaleiro) além do dia em que este tivesse trabalhado, porque o pagamento era feito por jornada.

Não cansarei inutilmente o leitor com o Direito Romano (no qual pacta sunt servanda), nem com tudo o que veio de lá para cá em matéria de direitos e obrigações contratuais. Quem de livre e espontânea vontade assumia uma obrigação deveria cumpri-la e pronto! Portanto, ninguém pode alegar que se trata de uma novidade jamais vista e tão importante que era necessário colocá-la de forma expressa e destacada no corpo do CC.

Nosso antigo Código Comercial não cogitou de obrigação semelhante ao artigo 422 do CC, tendo estipulado simplesmente no seu art. 165 que “os contratos mercantis são obrigatórios, tanto que as partes se acordam sobre o objeto da convenção, e o reduzem a escrito, nos casos em que esta prova é necessária”. Simples assim e ao que parece sempre se entendeu que honestidade e boa-fé faziam parte integrante dos contratos, especialmente dos comerciais.

Em circunstâncias normais da vida privada e dos negócios, a probidade e a boa-fé são naturalmente esperadas nas contratações. Destas fazem parte integrante, podendo ser entendidas como instituições sociais segundo a visão de Douglas North, Oliver Williamson e Galgano4, entre tantos outros. Sem elas não é possível estabelecer-se segurança e certeza nas relações jurídicas. E instituição social é regra e não exceção.

Voltemos aos antigos. No Velho Testamento é contada a aventura de Jacó, filho de Isaque, que não era absolutamente flor que se cheirasse. Por meio de ardis ele usurpou a primogenitura do irmão Esaú (que o jurou de morte) e roubou a bênção que seu pai daria a Esaú, pelo mesmo fato da primogenitura. Fugido de casa para não ser morto, foi para as terras do seu tio Labão, onde se enamorou da bela Rachel. O tio, que era outra flor intragável, prometeu dar Rachel em casamento a Jacó em troca de sete anos de trabalho. Passado o tempo e tendo sido pago o preço, chegou finalmente o dias das bodas. Mas Jacó foi para a tenda nupcial com Rachel (ele assim achava) e acordou no dia seguinte ao lado de sua irmã mais velha Lia. Nas sombras de sua tenta, certamente um pouco bêbado da festa e não tendo tido o devido cuidado de romper uma assimetria informacional, retirando o véu que cobria o rosto da noiva, ele não percebeu que havia sido enganado até que despertou da carraspana. Tendo reclamado ao sogro, este lhe disse “já era”, desculpando-se pelo fato de que não podia casar a filha mais nova antes de casar a mais velha. Mas prometeu a Jacó dar Rachel em casamento por mais sete anos de trabalho, ainda que a entrega do produto, uma vez aceito o negócio, tivesse sido feita de forma imediata.

Do ponto de vista institucional, a época era outra, não sendo hoje o caso de Labão repetir a brincadeira sob a forma de reserva mental. Institucionalmente a sociedade seguramente espera que o pai entregue a noiva prometida e não outra e que (infelizmente para alguns sogros) ele não poderá exigir pagamento do futuro genro por meio de trabalho forçado ou em espécie. E esta é a regra dos negócios. Não respeitá-la é descumprir o contrato, como sempre foi considerado na história do direito, sem a necessidade de se criar norma expressa a respeito. Assim economiza-se tinta e papel e dores de cabeça para os operadores do direito. Isto porque as instituições sociais alcançam o status de norma, especialmente quando presentes no campo dos contratos.

Portanto, os árbitros nos feitos nos quais atuam, não podem cair na armadilha construída pelos dois dispositivos aqui comentados, porque se arriscam a aplicarem o mau direito.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.
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