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Arbitragem, Tribunal de Contas e o Direito Marítimo Portuário – IV
Autor: João Paulo Hecker da SilvaData de publicação: 07 de fevereiro de 2017 A relação "arbitragem, Tribunal de Contas e direito marítimo portuário" possui pontos de convergências que merecem um estudo mais detido. Assim, faz-se mister a compreensão de em que medida essa relação se dá.
O recorte a ser dado, primeiramente, reside na hipótese de celebração de convenção arbitral sobre a temática reequilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo. Como sabido, a via arbitral pode ser utilizada se versar, nos termos da lei 9.307, sobre "direitos patrimoniais disponíveis", enquadrando-se neste conceito jurídico apenas o direito cuja natureza não seja de interesse público primário. Sintetizando, a questão pode ser resolvida pela arbitragem, na hipótese de uma das partes ser o Poder Público, se versar sobre direito público secundário, sobre direito patrimonial do Estado.
Cientes de que questões atinentes ao reequilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo dizem respeito ao interesse público secundário, ou seja, ao interesse patrimonial do Estado, possível a utilização da via arbitral para resolução de conflito que dessa matéria se desdobre. Aqui se estabelece a primeira relação: a arbitragem pode ser utilizada para conflitos de questões de reequilíbrio econômico-financeiro de contrato administrativo.
Adiante, o mesmo contrato administrativo, discutido na seara arbitral, será objeto de análise do Tribunal de Contas, tendo em vista que lhe incumbe, por imperativo constitucional, fiscalizar, com base em critérios de legalidade, legitimidade e economicidade, matérias de natureza "contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração pública direta e indireta" (art. 70 da CF). Assim, qualquer contrato administrativo celebrado com a administração pública, seja direta ou indireta, será analisado em seu aspecto de economicidade pela seara de Contas, dele de modo a aferir os resultados depreendidos. Estabelece-se aqui a segunda relação: o Tribunal de Contas realiza controle de economicidade nos contratos administrativos que tiverem questões de reequilíbrio econômico-financeiro decididas pela jurisdição arbitral.
Conforme estudos já realizados, constatamos, também, certo preconceito do Tribunal de Contas no tocante à utilização da arbitragem sobre questões econômicas de contratos administrativos1. A jurisprudência do TCU, demonstrando o temor de a via arbitral prejudicar o erário público, proferiu decisões com teores de "não cabe ao administrador público a discricionariedade de optar ou não pela arbitragem, dispondo sobre o patrimônio público ou o interesse público, bem como afastar a tutela jurisdicional, em se tratando de um contrato administrativo de direito público" (TCU, acórdão 0391/2008, Plenário, Min. Rel. Marcos Vinícius Vilaça, j. em 12/03/2008) e de "questões de natureza econômico-financeira, atinentes ao poder tarifário da Administração Pública, o qual é irrenunciável, não podem ser objeto de resolução mediante a aplicação da arbitragem, por se tratarem de interesse público indisponível" (TCU, Acórdão 1796/2011, Plenário, Min. Rel. Augusto Nardes, j. em 06/07/2011). Assim, estabelece-se a terceira relação: o Tribunal de Contas, em alguma medida, é refratário à utilização da arbitragem pela administração pública em questões que envolvam reequilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos.
Indo além, recente artigo do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, de autoria de Sérgio Ciqueira Rossi2, estabelece a premissa de que a arbitragem pode ser utilizada nos contratos administrativos apenas na hipótese de ela constar expressa e previamente no edital de licitação, pois a administração pública deve obediência ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório.
Reitere-se, antes de tudo, que esse entendimento, apesar de ser do TCE-SP, segue a tendência das demais Cortes, porquanto todas se obrigam a julgar (com critérios de economicidade) contratos administrativos à luz do princípio da vinculação do instrumento convocatório, o que implica a aceitação de utilização da arbitragem apenas com a estipulação de cláusula arbitral.
Dessa premissa, de que a arbitragem deve ser previamente prevista pelo edital de licitação (vinculação ao instrumento convocatório), temos que a jurisdição arbitral só pode ser utilizada nos contratos administrativos que possuem cláusulas compromissórias, mas não compromissos arbitrais. Estabelece-se aqui a quarta relação: a instauração de procedimento arbitral, à luz do entendimento das Cortes de Contas, condiciona-se à previsão de cláusula compromissória no edital que precede a celebração do contrato administrativo, não podendo ser instaurada por compromisso arbitral.
No âmbito do direito marítimo portuário, a lei dos portos prevê a arbitragem de modo genérico, sendo regulamentada, de forma mais contundente, pelo decreto 8.468/15. Nesse instrumento normativo, há previsão de utilização da via arbitral para questões referentes ao reequilíbrio econômico financeiro de contratos administrativos, consoante art. 2 do mencionado.
Contudo, o mesmo diploma, de natureza regulamentar, inflige algumas restrições à instauração do procedimento arbitral para questões de reequilíbrio contratual entre administração e particular. Depreende-se isso do artigo 6º, §2º, inciso II, do decreto, dispondo que tais matérias apenas podem ser objeto de arbitragem se houver celebração de compromisso arbitral, sendo vedado o uso de cláusulas arbitrais. Estabelece-se aqui a quinta relação: contratos administrativos portuários, no tocante aos conflitos de reequilíbrio econômico-financeiro, só podem ser analisados pela jurisdição arbitral por meio de celebração de compromisso arbitral.
Assim, cotejando todas as cinco relações estabelecidas, a utilização da arbitragem, não obstante seus benefícios, sofre severas mitigações na seara marítima-portuária, pois os contratos administrativos portuários (i) só podem ser firmados por compromisso arbitral (imposição do decreto 8.468/15) e, concomitantemente, (ii) só podem ser firmados, de acordo com perigoso entendimento do TCE-SP – e, seguramente, das demais Cortes de Contas, haja vista observarem o princípio da vinculação ao instrumento convocatório –, por cláusula compromissória. Aí reside a correlação entre arbitragem, Tribunal de Contas e Direito Marítimo Portuário: a arbitragem para julgar questões de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos tem grande possibilidade de ser inviabilizada em decorrência da incompatibilidade do decreto 8.468/15 com o entendimento dos Tribunais de Contas.
A concatenação das cinco relações cotejadas origina um óbice à instauração de procedimento arbitral para o deslinde de questões concernentes ao reequilíbrio econômico-financeiro de contrato administrativo portuário. Expõe-se, a fim de combater o imbróglio, alguns motivos pelos quais essas incoerências interpretativas e normativas devem ser extirpadas do ordenamento jurídico brasileiro.
Em primeiro, o princípio da vinculação ao instrumento convocatório merece ser relativizado em se tratando da possibilidade de se instaurar a via arbitral para os contratos administrativos portuários. De fato, a Corte de Contas não pode julgar o mérito do que for decidido pelo Tribunal arbitral; contudo, pode desestimular o uso desse meio de resolução ao julgar o contrato administrativo portuário irregular em razão de não conter no edital de licitação cláusula compromissória autorizando a utilização dessa via. Destaque-se, ademais, que julgar o contrato irregular pelo simples fato de a decisão ser oriunda de arbitragem instaurada por compromisso arbitral não soa razoável e prejudica particulares e a própria administração pública.
Em segundo, o prejuízo referido pode ser constatado ante o fato de a arbitragem, em determinadas situações, ser o instrumento mais útil, eficiente e condizente com a complexidade do caso concreto, sendo incoerente impedir o seu uso por mero receio de prejuízo ao erário ou pelo fato de o edital de licitação não o prever.
Em se tratando de contratos administrativos portuários, aliás, sua utilização para resolução de questões de reequilíbrio econômico-financeiro se mostra mais adequada em face do Judiciário, ou de qualquer outra via, porquanto (i) se escolhem, além de um árbitro de direito, outros dois árbitros das mais variadas áreas, enriquecendo a qualidade da decisão com elementos de cognição à altura da complexidade da causa na qual se encontram múltiplos conhecimentos destoantes do jurídico; (ii) se analisa, com mais precisão, temas com os quais o Judiciário não possui expertise nem aparato técnico preparado para enfrentar; (iii) se resolve o litígio com mais celeridade e eficiência, princípios corolários da administração pública gerencial pautada na busca e no controle por resultados.
Em terceiro, o próprio STJ já reconheceu a impossibilidade de se invalidar eventual arbitragem pelo simples fato de ela não ser oriunda de cláusula compromissória. O princípio da vinculação ao instrumento convocatório, nos casos que tais, merece ser relativizado para possibilitar à administração pública a utilização desse instrumento se vislumbrar ser o meio mais adequado, eficiente e célere. Assim, no REsp 904813, o STJ corroborou a tese aqui defendida dizendo que "O fato de não haver previsão da arbitragem no edital de licitação ou no contrato celebrado entre as partes não invalida o compromisso arbitral firmado posteriormente" (STJ, REsp 904813, Terceira Turma, Min. Rel. Nancy Andrighi, j. em 20/10/2011, DJe 28/02/2012).
Em quarto, o decreto 8.468/15, em que pese sua nobre intenção de regular a arbitragem marítima-portuária, não pode impor um plexo de exigências para instauração desse meio, tampouco vedar a celebração de cláusulas compromissórias para questões de reequilíbrio econômico-financeiro.
A administração gerencial busca o controle por resultados, demonstrando ser mais adequado, à luz dessa premissa, outorgar ao gestor público responsável verificar, cotejando (i) complexidade do caso, (ii) qualidade das vias, (iii) economicidade e (iv) celeridade, se o caso concreto é resolvido de forma mais eficiente por uma ou outra seara de justiça. Se optar pela arbitragem, presume-se que vislumbrou nesse meio a resolução mais adequada do caso, não havendo motivos para a lei impedir a utilização dessa via.
Nesse ponto, destaque-se que pode o Tribunal de Contas julgar o contrato de acordo com as competências que lhe foram atribuídas pelo art. 70 da CF. O que não pode é existir o desestímulo, por parte dessa seara administrativa, à utilização da arbitragem pelo simples fato de ela não estar prevista no edital, haja vista o próprio STJ relativizar o princípio da vinculação ao instrumento convocatório. Ou seja, as decisões da Corte de Contas devem se dar com base em critérios de economicidade, aferindo os resultados obtidos pelo gestor público, não podendo prejudicar o que for decidido pelo Tribunal arbitral mesmo se em alguma medida repercutir na seara financeira.
As jurisdições (estatal, arbitral e administrativa) devem conviver de forma harmônica e independente. Em determinados casos, o provimento de uma seara repercute noutra, pois as competências de cada uma, mesmo que privativas ou exclusivas, refletem nos mais variados campos do conhecimento, sendo normal a decisão de uma seara afetar matérias que serão julgadas posteriormente por outra justiça mediante outro tipo de análise.
Diante disso, conclui-se, com segurança, que as decisões do Tribunal de Contas não devem prevalecer nem mitigar a utilização da arbitragem: devem conviver de forma harmônica. A jurisdição arbitral pode possibilitar uma plêiade de benesses à administração pública, de modo que mitigar sua utilização implica privar o Estado e também o particular de obterem uma resolução mais eficiente.
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1. SILVA, J.P.H. ; VASCONCELOS, R. ; GULIM, M.O. . Arbitragem e Direito Marítimo: uma Breve Análise à Luz da Arbitragem na Lei dos Portos (e do Decreto nº 8.465/2015). Revista Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário, São Paulo, v. 35, p. 145-161, nov./dez. 2016.
2. Ver: Sérgio Ciqueira Rossi, Tribunal de Contas e a Arbitragem. Clique aqui. Acesso em 30/01/2017.
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*João Paulo Hecker da Silva é sócio do escritório Lucon Advogados « Voltar